Como o amigo Roberto Bolaño (1953-2003), Alan Pauls costuma misturar em seus livros referências pop/históricas e figuras fictícias, sempre de forma original, num hábil equilíbrio entre o realismo, puro e simples, e um tom levemente onírico, às vezes próximo do devaneio alucinatório. Em São Paulo para o lançamento de História do Cabelo, Pauls deve contar mais sobre o livro nessa quarta (ver serviço abaixo). Como exemplo de seu estilo hipnótico e também aperitivo para o bate-papo, separamos um dos melhores trechos do romance, no qual os “protagonistas” são nada mais, nada menos do que Elvis e seu cabeleireiro e guru Larry Geller.
“Ele só se lembra do cartão de noite, bem tarde, na cama, enquanto vê pela televisão um documentário sobre a vida de Elvis Presley que, como de hábito, herda de Eva. Antes de cair no sono, ele, com um último arroubo de entusiasmo, apoderou-se do controle remoto e empreendeu uma dessas turnês geralmente estéreis, desesperadas desde o início, em busca da gague, do cristal de nostalgia, do redutor de cintura, da fugaz epifania pornográfica que lhes permita despedir-se do dia verdadeiramente satisfeitos. De repente, enquanto se deixam adormecer pela vertigem desse carrossel de imagens sem som, ela aponta um dedo sonâmbulo para o televisor e diz: “aí”. “Aí” é a camisa bolero azul, as calças xadrez claras, as pernas espasmódicas de Elvis, que agiganta sua boca aberta como se fosse devorar o microfone. Eva diz “aí” e encosta um lado da cabeça no peito dele, de frente para a tv, e dorme no ato. (…) Curte Elvis, claro, mas não é ele, na verdade, que o cativa. É o cabeleireiro de vinte e quatro anos que numa tarde de 1964, conforme fica sabendo naquele instante, mantém o Rei duas horas fechado no banheiro de Graceland, a mansão de Perugia Way, em Bel Air, e lava, literalmente, o cérebro dele. Larry Geller. Muda sua vida para sempre. Aumenta o volume. “Geller lhe abre as portas da teologia. Hinduísmo, budismo, cristianismo, vegetarianismo, autoajuda…” Em pouco tempo, ao que parece, Elvis o contrata como assessor em tempo integral. Não o chama de meu cabeleireiro, mas de meu guru. Salvo o Coronel, seu lendário manager, não há ninguém na corte de Presley com a mesma categoria. Por Elvis, Geller renuncia a Peter Sellers, Steve McQueen, Paul Newman, a toda sua carteira de clientes. Cortará o cabelo dele para sempre; a última vez, na manhã de 16 de agosto de 1977, no dia de sua morte. “Em um ano, Elvis devora uma bibliografia de mais de cem títulos dedicados a todas as correntes religiosas em busca de uma resposta às perguntas que afligem todo ser humano: quem somos?, de onde viemos? Mas acima de tudo… por que eu fui o eleito?” Um dia, viajando juntos pelo Novo México, Elvis confronta Larry: passou um ano inteiro estudando e Deus não lhe deu uma só resposta concreta. “Você precisa deixar seu ego de lado para deixá-lo entrar”, diz Geller. “Esqueça os livros e o conhecimento e se esvazie para que Deus possa entrar em você.” Elvis reflete sobre a crítica com humildade e dirige em silêncio através do deserto. Logo depois tem a impressão de ver Stálin desenhado numa nuvem. Para o carro, pula sobre o capô e grita fora de si: “Por que Stálin? O que Stálin está fazendo lá em cima?”. Em seguida, o rosto de Stálin se transforma no de Cristo. É o primeiro encontro de Elvis com Deus. “O que meus fãs pensariam se me vissem agora?”, pergunta a seu cabeleireiro guru com lágrimas nos olhos. “Iriam gostar ainda mais de você”, diz Geller. “Assim espero”, diz o Rei, e apanha seu lenço.”
“Ele só se lembra do cartão de noite, bem tarde, na cama, enquanto vê pela televisão um documentário sobre a vida de Elvis Presley que, como de hábito, herda de Eva. Antes de cair no sono, ele, com um último arroubo de entusiasmo, apoderou-se do controle remoto e empreendeu uma dessas turnês geralmente estéreis, desesperadas desde o início, em busca da gague, do cristal de nostalgia, do redutor de cintura, da fugaz epifania pornográfica que lhes permita despedir-se do dia verdadeiramente satisfeitos. De repente, enquanto se deixam adormecer pela vertigem desse carrossel de imagens sem som, ela aponta um dedo sonâmbulo para o televisor e diz: “aí”. “Aí” é a camisa bolero azul, as calças xadrez claras, as pernas espasmódicas de Elvis, que agiganta sua boca aberta como se fosse devorar o microfone. Eva diz “aí” e encosta um lado da cabeça no peito dele, de frente para a tv, e dorme no ato. (…) Curte Elvis, claro, mas não é ele, na verdade, que o cativa. É o cabeleireiro de vinte e quatro anos que numa tarde de 1964, conforme fica sabendo naquele instante, mantém o Rei duas horas fechado no banheiro de Graceland, a mansão de Perugia Way, em Bel Air, e lava, literalmente, o cérebro dele. Larry Geller. Muda sua vida para sempre. Aumenta o volume. “Geller lhe abre as portas da teologia. Hinduísmo, budismo, cristianismo, vegetarianismo, autoajuda…” Em pouco tempo, ao que parece, Elvis o contrata como assessor em tempo integral. Não o chama de meu cabeleireiro, mas de meu guru. Salvo o Coronel, seu lendário manager, não há ninguém na corte de Presley com a mesma categoria. Por Elvis, Geller renuncia a Peter Sellers, Steve McQueen, Paul Newman, a toda sua carteira de clientes. Cortará o cabelo dele para sempre; a última vez, na manhã de 16 de agosto de 1977, no dia de sua morte. “Em um ano, Elvis devora uma bibliografia de mais de cem títulos dedicados a todas as correntes religiosas em busca de uma resposta às perguntas que afligem todo ser humano: quem somos?, de onde viemos? Mas acima de tudo… por que eu fui o eleito?” Um dia, viajando juntos pelo Novo México, Elvis confronta Larry: passou um ano inteiro estudando e Deus não lhe deu uma só resposta concreta. “Você precisa deixar seu ego de lado para deixá-lo entrar”, diz Geller. “Esqueça os livros e o conhecimento e se esvazie para que Deus possa entrar em você.” Elvis reflete sobre a crítica com humildade e dirige em silêncio através do deserto. Logo depois tem a impressão de ver Stálin desenhado numa nuvem. Para o carro, pula sobre o capô e grita fora de si: “Por que Stálin? O que Stálin está fazendo lá em cima?”. Em seguida, o rosto de Stálin se transforma no de Cristo. É o primeiro encontro de Elvis com Deus. “O que meus fãs pensariam se me vissem agora?”, pergunta a seu cabeleireiro guru com lágrimas nos olhos. “Iriam gostar ainda mais de você”, diz Geller. “Assim espero”, diz o Rei, e apanha seu lenço.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário