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terça-feira, 8 de novembro de 2011

Paul Simon em Limoeiro, no Pelô, no Haiti

Em 1986, Paul Simon se reinventou. Um dos maiores cancionistas americanos, com os dois pés fincados fundo na tradição folk, fez um álbum com uma plêiade de músicos africanos. Graceland foi um sucesso estrondoso e mundial, e nem podia deixar de ser: canções primorosas como as que ele sabia e sabe fazer, com uma embalagem sonora nova e instigante; dezenas de músicos exóticos e talentosíssimos em torno do já conhecido estilo de composição que embalara uma geração em sua parceria com Art Garfunkel.
Em 1990, Paul deu continuidade natural a sua exploração que ajudou a consolidar o termo world music, gravando The rhythm of the saints no Brasil, com músicos brasileiros (Milton Nascimento, Naná Vasconcelos, Uakti) e africanos. A faixa de abertura foi gravada em pleno Pelourinho de Salvador, com o Olodum.


Porém, enquanto o sucesso destes álbuns se consolidava, surgiam também diversas questões, em parte políticas, em parte estéticas. Politicamente, lembrou-se que Paul furou o bloqueio imposto pelo mundo à África do Sul, à época em regime de Apartheid, e ao mesmo tempo ele foi acusado de explorar comercialmente a música africana – ou seja, de mero oportunismo.
E esteticamente, a crítica era de que não havia um real entrosamento entre as composições e o que foi feito delas. As canções de Graceland e The rythm of the saints não deixam de ser canções de Paul Simon, criadas dentro de uma formatação folk e transplantadas para universos de ritmos sem que houvesse uma real interação entre ambos, e sim uma simples sobreposição. Em The obvious child, por exemplo, ao chegar no trecho contrastante que se inicia com Sonny sits by his window, a batucada do Olodum tem que ser colocada como fundo na mixagem do estúdio, de maneira muito pouco natural. É como se para esta parte da canção a base percussiva não servisse, fosse algo incômodo que não se pode dispensar, pois deverá voltar mais adiante.
Por tudo isso (como também pela tendência irreverente do brasileiro de começar a chamar de arroz de festa todo gringo que para por aqui), Paul Simon foi alvo de algumas gozações, caracterizado como o sujeito que chega a uma festa em que não conhece ninguém e quer logo se mostrar enturmado, ou como o que realmente era: um estrangeiro algo deslumbrado com culturas diferentes e riquíssimas:
Baião de Lacan – Leila Pinheiro – Guinga e Aldir Blanc

Aqui começa um pequeno emaranhado de citações. O Baião de Lacan, em uma letra quase atemática, narra dispersa e sarcasticamente uma tentativa de carreira artística nos EUA:
Um empresário quis que eu fosse a Massachutis
Oquêi, my boy! – Cheguei pra rebentar e putz!
Voltei sem calça e quase que um me sequestrava…
Mais adiante, depois do fracasso da iniciativa, um disparatado seguidor de Lacan diagnosticou estresse e me mandou pra roça descansar. E aí Aldir de passagem dá uma rasteira no músico americano que fez o caminho inverso do protagonista fabuloso da canção:
Eu fui pro Limoeiro e encontrei o Paul Simon lá
Tentando se proclamá gerente do maufá…
Só que a melodia inicial deste trecho é tirada por Guinga de outra canção: o Forró em Limoeiro, a primeira música gravada por ninguém menos que Jackson do Pandeiro.

O Forró em Limoeiro aqui é apresentado como uma espécie de paradigma da nacionalidade - o cabra que foi ao Forró se meteu numa tremenda briga, e gostou! – tanto tematicamente quanto pela particularidade de ser uma gravação do Jackson (a autoria é de Edgar Ferreira). A narrativa do forasteiro totalmente aclimatado, assim como a própria figura do Jackson, contrastam com a posição do Paul Simon, tentando gerenciar algo de que não teria um real conhecimento.
E no entanto a posição assumida pelo Baião de Lacan não é tanto a da defesa de uma suposta brasilidade frente a uma suposta exploração estrangeira, mas antes uma cobrança à postura brasileira, em cujo bojo vem a referência ao Olodum no início da letra: Eu ouço muito elogio à barricada, procuro as nossa por aqui - Não vejo nada, para no fim alertar: se o pião não chiar, o Boi Bumbá vai virar vaca!

Em Haiti, Caetano e Gil traçam o caminho de Paul Simon, só que em sentido oposto: enquanto ele sai da música americana tradicional e tenta incorporar o ritmo brasileiro à sua linguagem, eles partem do Olodum, tanto temática quanto musicalmente, para incorporar o estilo originalmente americano do rap. Só que Caetano e Gil, em vez de cairem de paraquedas na cultura estranha, tem um ponto de apoio para esta passagem, que é o movimento de rap e hip hop brasileiro, especialmente paulista. É a partir desta referência que constroem Haiti. Com isso, a mistura de ritmos que promovem soa muito mais orgânica que a de Paul Simon
Caetano e Gil também citam a passagem de Paul pela Bahia. Porém, em vez de criticá-lo ou tratar da defesa de valores nacionais, ou coisa parecida, preferem apontar o abismo entre a visão espetacularizada dos meios de comunicação de massa – e aí está incluída, ainda que involuntariamente, a música de Paul Simon, como a lente do Fantástico – e a realidade onde ninguém é cidadão. E quando se referem indiretamente ao Olodum – mas não só a ele – como um batuque com a pureza de meninos uniformizados de escola secundária em dia de parada, traçam um paralelo à preocupação de Paul expressa em The obvious child, que não por acaso trata de crianças pobres ao gravar no Brasil, assim como tratara dos sem-teto ao gravar na África.
E a dicotomia ente as duas visões fica patente na citação que fecha Haiti, estabelecendo também a relação com outra canção de Caetano, Menino do Rio. A aspiração expressa na outra – o Havaí seja aqui – converte-se numa constatação dúbia – o Haiti é aqui, o Haiti não é aqui, mantendo-se basicamente a melodia, como que ironizando a outra canção do mesmo autor que retrata uma realidade tão diversa – ironia que, em vez de voltar contra Paul Simon, Caetano sabiamente volta para si próprio.
Talvez as cobranças a Paul Simon tenha sido injustas. As de que estaria usando a música de outros países para alavancar sua carreira, é óbvio que sim. O grupo vocal Ladysmith Black Mambazo, que gravou com Paul em Graceland, adquiriu justíssima visibilidade internacional, e boa parte do mundo conheceu a vasta música feita na África a partir daí – inclusive podendo perceber com mais clareza as diferenças entre o ela e trabalho de Paul Simon. Em medida algo menor, foi o que aconteceu com The rhythm of the saints. A começar pelo título, é uma visão estrangeira, e nem poderia deixar de ser. Reducionista, sem dúvida, pela ambição de tanta coisa que devia caber num álbum, e não cabia, claro. E um encontro difícil entre uma tradição (não apenas) musical e uma diversidade de outras, que Paul tenta traçar em versos respeitosos como Olodumaré está sorrindo no Paraíso, eu realmente acredito.
Mas o que fica claro também é que Paul Simon tem igualmente consciência do tamanho de sua empreitada e da impossibilidade de levá-la a cabo, mas da necessidade de que este passo seja dado. Desta consciência é que saem alguns dos momentos de maior densidade poética de ambos os álbuns. Como quando em Graceland ele canta:
Losing love is like a window in your heart
Everybody sees you’re blown apart
Everybody feels the wind blow
Ou em The cool cool river, construída sobre um complicado compasso de nove tempos, que às vezes se organiza em ternário composto e às vezes se desarticula novamente, sem soar nada folclorizante, em que Paul explicita que não faz o jogo do contente nem está interessado em superficialidades: quem diz “tempos duros”? Estou acostumado com eles. E finalmente reconhecendo, à sua maneira, o que Caetano e Gil apontam, ao mesmo tempo em que entoa um canto épico de esperança: às vezes nem mesmo música pode ser um substituto para lágrimas.


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