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terça-feira, 10 de janeiro de 2012

"Versalhes Tropical" - A fuga da corte real portuguesa para o Brasil


História sem gracejos
Por Alex Miyoshi

"Versalhes Tropical" evita a caricatura e analisa a fuga de d. João VI para o Brasil como complexo problema mundial

A fuga da corte real portuguesa para o Brasil é interpretada de modos diversos. Alguns colocam à frente do episódio um príncipe medroso, incapaz e glutão, seguido de figuras e situações pouco nobilitadoras. Tal é a fama dessa imagem que, alimentando-se também de sua própria repetição, dificulta-se pensar em algo longe do tragicômico.
Não é o caso defender a abolição do caricato. Mas uma historiografia contemporânea do episódio poderia voltar-se mais ao episódio e menos à caricatura. Não reiterá-la exige um esforço, ainda mais se o narrador estiver imerso na cultura brasileira; ou então é preciso pertencer, originar-se, imbuir-se de uma outra cultura: como um estrangeiro, que poderia ter outros olhos para o caso.
Contar uma história sem gracejar não é o mesmo que deixar de ser gracioso. Assim como a austeridade pode comportar a graça, um texto historiográfico pode ser seco, vigoroso e encorpado como o melhor vinho. É este o caso de "Versalhes Tropical: Império, Monarquia e a Corte Real Portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821" (tradução de Renato Aguiar, ed. Civilização Brasileira, R$ 50), da historiadora Kirsten Schultz. O livro é sua tese de doutorado, iniciada em 1994 na Biblioteca John Carter Brown e publicada pela primeira vez em 2001, nos EUA.
Em meio à boa safra de livros recentes sobre a fuga real 1, o de Kirsten Schultz é o mais dedicado a compreender o episódio como um complexo problema histórico e historiográfico internacional. Sua narrativa densa e cadenciada nos faz mergulhar naqueles anos, atendo-se principalmente à reflexão sobre eles, com admirável neutralidade.
Há, evidentemente, comentários sobre a vasta bibliografia do assunto, passando pela complicada questão social-econômica em torno da proposta “liberal-conservadora” de José da Silva Lisboa, o visconde de Cairu. Mas o melhor do trabalho de Schultz foi abster-se dos paralelos com situações contemporâneas, muitas vezes comprometedores à compreensão do episódio. Mantendo-se atenta a ele, a autora põe em relevo e sob nova luz dados já conhecidos, embora frequentemente menosprezados.
A começar pelo merecido destaque dado por ela ao fato de o “transplante” da corte portuguesa à América ser uma ideia antiga (proposta também pelo padre Vieira, quase um século e meio antes da fuga), renovada e apresentada a dom João VI em 1803 pelo chefe do tesouro real, Rodrigo de Souza Coutinho, com o objetivo de criar “hum poderoso Imperio no Brasil”, reconquistar futuramente eventuais perdas na Europa e castigar o “fero Inimigo” francês, surdo à tentativa portuguesa de se manter longe de conflitos.
É claro que, mesmo antecipada, a transferência ainda seria uma fuga, com a diferença que as dimensões territoriais e os recursos do Brasil, seriamente considerados na ocasião, talvez se sobrepusessem de forma positiva aos demais motivos da mudança.
Para a corte portuguesa, a decisão sobre o que fazer não era simples. Nenhuma realeza europeia jamais se transplantara à periferia do império. Kirsten Schultz partiu daí para entender amplamente as motivações da fuga, ponderando uma questão de extrema relevância à Coroa: sua representatividade não apenas aos súditos, como também para o mundo, considerando ainda a manutenção do império, da monarquia absoluta e de sua economia essencialmente mercantilista.
Após a fuga da corte, para além de justificá-la, era preciso cuidar da imagem de um país monárquico e escravista, facetas em diferentes medidas associadas ao atraso. Havia uma grande carga de notícias denegridoras por parte dos franceses (que acusavam os portugueses de serem covardes e de renunciarem ao reino) e dos ingleses (para quem a transferência da corte teria sido concebida por Napoleão, aproveitando-se da fraqueza de dom João VI).
Além disso, as revoluções nos EUA, na França e no Haiti estavam muito frescas; o temor que houvesse algo semelhante no Brasil era grande. Os mercadores britânicos se empenhavam em transformar os “Brasis” num “empório das manufaturas britânicas destinadas ao consumo de toda a América do Sul”. Unificar historicamente o império, portanto, tornou-se uma necessidade, assim como fortalecer a monarquia e viabilizá-la frente aos países que a minavam em favor da república.
Como várias pessoas argumentaram à época, lembra a autora, tanto “a transferência da corte quanto a subseqüente designação do Brasil como reino (em 1815) tinham de ser consideradas como resultantes de uma mudança no status do Brasil, em vez de a ela conducentes”. Em 1818, a Aclamação de Dom João VI juntou-se a esses dois eventos “como triunfo da autoridade real e da unidade histórica e indivisível dos três reinos” (Portugal, Brasil e Algarves). E, se a unificação dos reinos e a Aclamação não mudaram a estrutura do governo, conservando seu regime e mantendo indefinida a residência real, suas repercussões seriam representativas ao celebrarem a derrota da Revolução Francesa, a “vitória” sobre as revoltas republicanas por toda a América e uma resposta ao crescente poder dos EUA.
O esforço de civilizar a cidade do Rio de Janeiro inseriu-se na tentativa de justificar o novo lar da corte, para o qual, conforme a Guerra Peninsular se estendia, a ojeriza inicial dos exilados no Rio diminuía. Nas palavras da autora, a “compreensão das fronteiras da nação como, acima de tudo, morais e políticas também lhes permitiu reconceber a identidade nacional no contexto de uma transformação do Novo Mundo”.
De terra da perdição, o Brasil tornou-se “um abrigo contra a decrepitude”, uma “promessa de regeneração”, um “refúgio virtuoso da corrupta Europa, um lugar onde a civilidade sitiada pudesse prosperar”. Articulou-se, assim, um duplo movimento, no qual a América portuguesa passava a ser vista como lugar privilegiado à restauração da boa imagem de Portugal, que, por sua vez, contribuiria a tornar positiva a imagem da América portuguesa.
Assim, ao problema de imagem (muito importante no livro, não por acaso intitulado “Versalhes Tropical”), Kirsten Schultz relaciona um problema capital de história: são os acontecimentos que acabam por definir a representação como ponto privilegiado de observação aos próprios acontecimentos. A autora analisa com profundidade os discursos da época sobre as condições da colônia (a arquitetura, os hábitos e a escravidão), detendo-se no modo como essas condições eram colocadas em perspectiva dos rumos da nação lusitana, juntamente com o seu passado. Menciona, por exemplo, um argumento de Silva Lisboa, que teria ancorado “o comércio na história, em vez de apresentá-lo como um triunfo sobre a história” 2.
Para ele, os portugueses, à diferença dos revolucionários franceses e dos britânicos na Índia, não seriam “mercenários comerciais”, alheios às obrigações sociais. Pelo contrário, o comércio português seria historicamente nobre: “Para os portugueses não fazia sentido distinguir as causas e os efeitos do comércio e da civilização aristocrática, pois seu caráter nacional, o seu “espírito das leis” montesquiano (...) era a um só tempo mercantil e cavalheiresco”. Retomar a glória lusa do século 16 como “origem idealizada” era também uma das formas de combater os ataques denegridores à Coroa portuguesa.
Por outro lado, tomar a história para justificar o poder real e imperial na América “produziu a sua própria crise de representação”. Enquanto o Brasil era apresentado orgulhosamente como “a amplificação do território da May-Patria para a Monarchia Lusitana”, a presença da corte no Novo Mundo mostrava que “essa ampliação histórica de Portugal parecia ter chegado à sua derradeira conclusão”.
A localização permanente do rei era a “grande questão do Estado” na década de 1810. A ausência do monarca tanto lá quanto cá era preocupante. Salvar a monarquia e o império demandava uma nova organização do poder real.
Daí a recomendação de Silvestre Pinheiro Ferreira, em 1814, de divisão da “autoridade real”, com dom João “imperador do Brasil, soberano de Portugal” e d. Pedro “Rei de Portugal, herdeiro da Coroa do Brasil”, como tentativa “de dar suporte a uma representação vigorosa dessa autoridade sobre uma área maior”, diminuindo “a percepção de marginalidade bem como as margens físicas que antes definiam a relação do Brasil com Portugal e agora pareciam definir a relação de Portugal com o Brasil”.
Em outras palavras, a articulação do passado com o futuro e as ambiguidades que pudessem daí surgir também estão no título de um relatório pesquisado por Kirsten Schultz 3, “Memórias Sobre o Estabelecimento do Império do Brazil, ou Novo Império Lusitano” (grifo nosso), termos equivalentes “tanto do ideal histórico português de renovação política como do projeto europeu de civilizar o Novo Mundo”.
A autora aponta ainda outra “tensão”, baseada em análise de Ana Cristina Araújo para o escudo do Reino Unido português 4. Com o brasão de Portugal no centro, envolto pela esfera armilar da bandeira do Principado do Brasil, de 1645, o escudo “sugeria não apenas os domínios expansivos portugueses, como também o poder emergente do Brasil”. Porém, enquanto as torres “evocavam o glorioso passado português, a sua localização no interior da esfera consagrava o destino americano do império (ponto de chegada)”. Em 1822, o escudo do Reino Unido de Portugal desfez-se da esfera armilar. O excelente livro de Kirsten Schultz não explica esse fato. Nem precisava. A autora sabe que esse é um outro e complexo episódio da história.

Publicado em 10/5/2009
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Alex Miyoshi
É arquiteto e professor, doutorando em história da arte no IFCH-Unicamp, onde faz pesquisas sobre arte e arquitetura dos séculos XIX e XX. Edita a "Revista de História da Arte e Arqueologia" na mesma instituição.

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