Biblioteca Latino-Americana: Xangô, o grande fodão [Changó, el gran putas], de Manuel Zapata Olivella
16 de março de 2012
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Como sabe quem tem acompanhado este blogue, a tag Biblioteca Latino-Americana é um cantinho reservado aqui na Fórum para uma coleção de notas introdutórias, breves resenhas que apresentam o leitor brasileiro a obras canônicas do pensamento hispano-americano. Minha ideia até agora era ater-me à tradição ensaística do continente, mas meu contato, nas últimas semanas, com um romance genial e desconhecido no Brasil me fez mudar de ideia, inclusive porque se trata aqui de uma ficção na qual há tanto pensamento como nos ensaios mais ricos. Falo de Xangô, o grande fodão, livre tradução minha para Changó, el gran putas (1983), monumental obra do escritor e antropólogo afro-colombiano Manuel Zapata Olivella, já traduzida ao inglês mas da qual não há sequer notícia em português.
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Manuel Zapata Olivella nasceu em 1920 em Santa Cruz de Lorica, na província de Córdoba, a pouco mais de 20 km da Costa Caribe colombiana. Morreu em Bogotá em 2004. Não seria exagero propor que se trata do escritor e intelectual afrocolombiano mais destacado de todos os tempos. Respeitado e venerado na melhor tradição do preto véio, Zapata Olivella fez, cedo, sua morada em Cartagena de Índias, junto com Barranquilla um dos dois grandes polos urbanos da Colômbia Atlântica. Mas também viajou como poucos. No belíssimo documentário de Maria Adelaida López sobre sua vida e obra, aprendemos que ele queria ser veterinário, mas o pai o enviou à Universidade Nacional, em Bogotá, para estudar “o maior animal de todos” (seu pai, Antonio María Zapata, havia sido o primeiro negro graduado da Universidade de Cartagena). Curiosamente, depois de cursar Medicina, Zapata Olivella comporia uma obra literária em que não resta pedra sobre pedra do antropocentrismo.
Viajando pelas Américas na segunda metade da década de 40, escreve seu primeiro romance, Tierra mojada (1947). Visita as plantações de banana na Costa Rica, topa com as tropas dos EUA no Panamá e se finge de boxeador cubano na Guatemala para sobreviver e juntar o dinheiro necessário para seguir viagem ao México, até comer o pão que o diabo amassou no Harlem, conhecer Langston Hughes e o Harlem Renaissance e consolidar a tendência que caracterizaria as últimas cinco décadas de sua caudalosa obra, a reconstrução, valorização e reflexão sobre a experiência dos povos afro-descendentes nas Américas. Depois de publicar os romances de temática afro La calle 10 (1960), Detrás del rostro (1963), Chambacú, corral de negros (1963) e En Chimá nace un santo (1964), Zapata Olivella se dedicaria às viagens, ao trabalho de antropólogo e folclorista e à promoção da música afro-colombiana (ele foi o responsável pela primeira grande performance de música afro-colombiana ao ar livre em Bogotá, ante uma multidão de compatriotas estupefatos ante a riqueza rítmica desconhecida), até o ponto em que todos imaginaram que ele havia concluído seu ciclo de romancista.
Mas estava em gestação sua obra maior, Changó, el gran putas, finalmente publicada em 1983. Ela realiza na literatura colombiana, grosso modo, o que o romance Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, só realizaria na literatura brasileira em 2006: contar, de forma ambiciosa, a história dos povos negros sob escravidão na América. A diferença principal é que enquanto Um defeito de cor escolhe um registro realista, que acompanha a longa vida de Kehinde, vendida como escrava no reino do Daomé no começo do século XIX e protagonista de vários eventos da história brasileira ao longo do século, Changó não se atém a um narrador ou a um período histórico. É uma realização literária notável: trata-se de uma única história, encadeada, coerente, não de uma mera sucessão de episódios. É um romance no sentido estrito do termo, mas ele abarca mais de cinco séculos de história, desde a prisão e o exílio de Xangô no Delta do Rio Níger, passando pela fedentina e pelas mortes do navio negreiro, o cativeiro em Cartagena de Índias, a Revolução Haitiana, a Inconfidência Mineira, as Independências Bolivarianas (onde o Almirante negro José Prudencio Padilla derrota os espanhóis na batalha do Lago Maracaibo), a resistência afro-cubana cifrada na santería, a Guerra Civil dos EUA até a luta de Martin Luther King e Malcolm X no século XX.
Para descrever esse caráter monumental de Changó, el gran putas, poderíamos recorrer ao termo saga, se essa palavra não estivesse tão encharcada de uma teleologia épica ocidental. Os cinco séculos de acontecimentos contados por Zapata Olivella não são alinhavados por um narrador em 3ª pessoa, que paire sobre os acontecimentos, mas tampouco há um narrador único em 1ª pessoa, como a Kehinde de Ana Maria Gonçalves. A cada momento, é um personagem diferente que conta a história. As mudanças de narrador vão sendo indicadas por um espaço extra entre os parágrafos, mas você com frequência não sabe quem está narrando o relato até bem avançada a anedota. Em geral, logo que consolida sua identificação com o narrador da vez, você topa com mais um espaço extra separando parágrafos e a história segue com outra voz desconhecida, cuja identidade você terá que compor de novo. Através de todas elas, mesmo a dos negros aos quais se impõe a ignomínia de serem capangas do colonizador, fala o espírito de Ngafúa, filho de Kissi-Kama, que ouviu sob a sombra do baobá a história da maldição de Xangô. Na melhor tradição africana, não é a voz individual que importa, mas o relato dos ancestrais transmitido coletiva e anonimamente. Zapata Olivella, então, não se limita a “contar a história” do povo negro usando um gênero ocidental, o romance. Ele toma esse gênero e o submete a uma africanização radical, que desmonta suas estruturas.
O começo do relato não é, evidentemente, o “descobrimento” da América, mas a prisão e o exílio de Xangô, o filho de Iemanjá que unificara os reinos do Níger. Das cinco grandes partes em que se divide o romance, a primeira, “As Origens”, é narrada em verso e antecipa o degredo em terras longínquas. Eu traduzo a seguir um trecho em que, depois de evocar os catorze orixás paridos por Iemanjá, Ngafúa, dirigindo-se ao Muntu (forma singular de Bantu, ou seja, “os homens”, “o povo”, com a ressalva de que o conceito inclui animais, vegetais, minerais, vivos e mortos), relata a prisão e o exílio de Xangô:
.
Escuta Muntu que te afastas
as passadas, as vivas histórias
os gloriosos tempos de Xangô
e sua trágica maldição.
.
Eléyay, ira de Xangô!
Eléyay, fúria da dor!
Eléyay, maldição das maldições!
Por vingança do rancoroso Loa
condenados fomos ao continente estranho
milhões de teus filhos
cegos manatis em outros rios
buscando as origens perdidas.
.
Por séculos e séculos
Ilé-Ifè a Cidade Sagrada
mansão dos Orixás
nunca esquecerá a inapagável mancha
a sinistra rebelião
contra o glorioso Xangô
terceiro soberano de Oyo
e sua nunca igualada vingança
quando prisioneiro e no exílio
ao Muntu condena a sofrer
seu próprio castigo.
.
Naquela época…
Muntu que esqueceis as passadas, as não mortas histórias
o furibundo e generoso Xangô
odiado por seus súditos
venerado por sua glória
a seus irmãos fez guerra
a Orum, cujo escudo é o sol
a Oxóssi, construtor do arco e da flecha
a Oke, habitante dos montes e dos cumes
a Olokun, enamorado dos machos
e até o doce Oko
o músico, o poeta
que fertiliza a terra com sua graça
as flautas, a kora, as trompetas
para dançar com elas, arrebatou.
.
Xangô, infatigável procriador
entre guerras, cavalgaduras e estribos
no intocado surco de suas irmãs
semeava a semente fértil
cepa das múltiplas tribos.
.
A Obá, espiã de sua formosura
para sempre nas noites
escondida entre as lagunas
entre todas, quis por esposa
e para que não tivesse paz em sua loucura
zelosa Orixá de seus passos
pôs cem olhos em sua cara
cem ouvidos
cem narizes
a pele sensível aos aromas
guardiã eterna de seu falo.
.
Oya, voluptuosa corrente
úmido, cheiroso corpo do Níger
sua preferida concubina
sua outra irmã
com suas mãos, seus braços de água
depois das terríveis batalhas,
as feridas, o sangue, lhe banhava.
.
Mas não era menos consentida
sua irmã menor, Oxum
espírito dos rios e das lagunas
em seus seios de águas retidas
dormia seu sono o Orixá.
O tempo furtado a seus amores
consagrou às armas
à invenção do raio e dos trovões
adestrando cavalos que voaram pelos céus.
A seus mais hábeis gladiadores:
Ao nobre Gbonka!
A Timi, o valente!
Ensinou-lhes o tiro da lança
a caça noturna do leopardo
burlar o nó corrediço da serpente
romper os invisíveis fios da aranha.
.
**
O poema prossegue por vinte páginas até o momento em que Ngafúa entreouve a voz do próprio Xangô legar aos descendentes de Obafulom, que o expulsaram da cidade sagrada de Ilé-Ifè, o desterro em outros mundos, a escravidão e a prometida redenção, na qual os descendentes do orixá libertariam também “a índia mãe de teu filho”, “a violada avó pelo amo” e “o mulato nutrido com teu sangue”.
Daí em diante, pelas próximas 500 páginas, o relato será contado em prosa, a partir da captura de escravos na região do Níger, narrada com detalhes, dos suicídios dos Carabali-Bibi ao colaboracionismo de muitos Diola (subgrupo da grande família Mandé, das terras altas da Costa do Marfim), que participaram do tráfico negreiro como capatazes das “Lobas Brancas” (portugueses e espanhóis, curiosamente referidos no texto com um termo feminino), até o horror do navio negreiro, contado espetacularmente, em duas vozes. Uma fixa, indicada por itálicos, espanhola, relata os cálculos do colonizador. Outra, impessoal e flutuante, assumida por vários africanos ao longo da jornada, narra a luta contra a morte.
Apesar das dezenas de narradores, o relato mantém sua unidade, como dito acima, porque através de todas as vozes fala o espírito de Ngafúa, que ouviu a profecia de Xangô sob a sombra do baobá. Ele se renova num parto acontecido já em Cartagena de Índias, em que Potenciana Biojo dá à luz ao protegido de Exu, que será batizado com o nome cristão de Domingo, mas que todos os negros chamarão de Benkos, pois assim se chamava o tataravô rei semeou sua kulonda, a semente física e espiritual com que, entre os Banto, o ancestral auspicia o nascimento de uma criatura. Benkos é “o menino mas que já era um velho. Doze anos tem e já levantava sua vara de touro” [Nota: esse tipo de construção aparentemente agramatical, em que se misturam os verbos no presente e no imperfeito – “doze anos tem e já levantava...” – é uma das marcas registradas da prosa de Zapata Olivella, e vai criando uma temporalidade de sonho ao longo do romance, na qual os eventos parecem acontecer numa espécie de tempo ao mesmo transcendental e encharcado de História, imemorial mas sempre presente].
Na quarta parte, “Os Sangues Encontrados”, o leitor acompanhará o espírito de Benkos em acontecimentos históricos nos quais a participação negra foi sistematicamente apagada: as independências bolivarianas e a Inconfidência Mineira. Nesta, Ngafúa, mensageiro de Xangô, acompanha o Aleijadinho e narra uma versão da revolta que muito brasileiro lerão estupefatos, tanto com a fina pesquisa histórica de Zapata Olivella como com a rasura sistemática da presença negra na revolta.
Não surpreende, claro, que trinta anos tenham se passado da publicação desse romance monumental, profundamente afro-americano e afro-brasileiro, sem que dele tenhamos tido muita notícia no Brasil. Urge, evidentemente, uma tradução ao português mas, enquanto isso, se você quiser se aventurar pela obra em espanhol, é só clicar aqui e baixar a maravilha em pdf.
Abobó!
http://revistaforum.com.br/idelberavelar/tag/biblioteca-latino-americana/
Como sabe quem tem acompanhado este blogue, a tag Biblioteca Latino-Americana é um cantinho reservado aqui na Fórum para uma coleção de notas introdutórias, breves resenhas que apresentam o leitor brasileiro a obras canônicas do pensamento hispano-americano. Minha ideia até agora era ater-me à tradição ensaística do continente, mas meu contato, nas últimas semanas, com um romance genial e desconhecido no Brasil me fez mudar de ideia, inclusive porque se trata aqui de uma ficção na qual há tanto pensamento como nos ensaios mais ricos. Falo de Xangô, o grande fodão, livre tradução minha para Changó, el gran putas (1983), monumental obra do escritor e antropólogo afro-colombiano Manuel Zapata Olivella, já traduzida ao inglês mas da qual não há sequer notícia em português.
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Manuel Zapata Olivella nasceu em 1920 em Santa Cruz de Lorica, na província de Córdoba, a pouco mais de 20 km da Costa Caribe colombiana. Morreu em Bogotá em 2004. Não seria exagero propor que se trata do escritor e intelectual afrocolombiano mais destacado de todos os tempos. Respeitado e venerado na melhor tradição do preto véio, Zapata Olivella fez, cedo, sua morada em Cartagena de Índias, junto com Barranquilla um dos dois grandes polos urbanos da Colômbia Atlântica. Mas também viajou como poucos. No belíssimo documentário de Maria Adelaida López sobre sua vida e obra, aprendemos que ele queria ser veterinário, mas o pai o enviou à Universidade Nacional, em Bogotá, para estudar “o maior animal de todos” (seu pai, Antonio María Zapata, havia sido o primeiro negro graduado da Universidade de Cartagena). Curiosamente, depois de cursar Medicina, Zapata Olivella comporia uma obra literária em que não resta pedra sobre pedra do antropocentrismo.
Viajando pelas Américas na segunda metade da década de 40, escreve seu primeiro romance, Tierra mojada (1947). Visita as plantações de banana na Costa Rica, topa com as tropas dos EUA no Panamá e se finge de boxeador cubano na Guatemala para sobreviver e juntar o dinheiro necessário para seguir viagem ao México, até comer o pão que o diabo amassou no Harlem, conhecer Langston Hughes e o Harlem Renaissance e consolidar a tendência que caracterizaria as últimas cinco décadas de sua caudalosa obra, a reconstrução, valorização e reflexão sobre a experiência dos povos afro-descendentes nas Américas. Depois de publicar os romances de temática afro La calle 10 (1960), Detrás del rostro (1963), Chambacú, corral de negros (1963) e En Chimá nace un santo (1964), Zapata Olivella se dedicaria às viagens, ao trabalho de antropólogo e folclorista e à promoção da música afro-colombiana (ele foi o responsável pela primeira grande performance de música afro-colombiana ao ar livre em Bogotá, ante uma multidão de compatriotas estupefatos ante a riqueza rítmica desconhecida), até o ponto em que todos imaginaram que ele havia concluído seu ciclo de romancista.
Mas estava em gestação sua obra maior, Changó, el gran putas, finalmente publicada em 1983. Ela realiza na literatura colombiana, grosso modo, o que o romance Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, só realizaria na literatura brasileira em 2006: contar, de forma ambiciosa, a história dos povos negros sob escravidão na América. A diferença principal é que enquanto Um defeito de cor escolhe um registro realista, que acompanha a longa vida de Kehinde, vendida como escrava no reino do Daomé no começo do século XIX e protagonista de vários eventos da história brasileira ao longo do século, Changó não se atém a um narrador ou a um período histórico. É uma realização literária notável: trata-se de uma única história, encadeada, coerente, não de uma mera sucessão de episódios. É um romance no sentido estrito do termo, mas ele abarca mais de cinco séculos de história, desde a prisão e o exílio de Xangô no Delta do Rio Níger, passando pela fedentina e pelas mortes do navio negreiro, o cativeiro em Cartagena de Índias, a Revolução Haitiana, a Inconfidência Mineira, as Independências Bolivarianas (onde o Almirante negro José Prudencio Padilla derrota os espanhóis na batalha do Lago Maracaibo), a resistência afro-cubana cifrada na santería, a Guerra Civil dos EUA até a luta de Martin Luther King e Malcolm X no século XX.
Para descrever esse caráter monumental de Changó, el gran putas, poderíamos recorrer ao termo saga, se essa palavra não estivesse tão encharcada de uma teleologia épica ocidental. Os cinco séculos de acontecimentos contados por Zapata Olivella não são alinhavados por um narrador em 3ª pessoa, que paire sobre os acontecimentos, mas tampouco há um narrador único em 1ª pessoa, como a Kehinde de Ana Maria Gonçalves. A cada momento, é um personagem diferente que conta a história. As mudanças de narrador vão sendo indicadas por um espaço extra entre os parágrafos, mas você com frequência não sabe quem está narrando o relato até bem avançada a anedota. Em geral, logo que consolida sua identificação com o narrador da vez, você topa com mais um espaço extra separando parágrafos e a história segue com outra voz desconhecida, cuja identidade você terá que compor de novo. Através de todas elas, mesmo a dos negros aos quais se impõe a ignomínia de serem capangas do colonizador, fala o espírito de Ngafúa, filho de Kissi-Kama, que ouviu sob a sombra do baobá a história da maldição de Xangô. Na melhor tradição africana, não é a voz individual que importa, mas o relato dos ancestrais transmitido coletiva e anonimamente. Zapata Olivella, então, não se limita a “contar a história” do povo negro usando um gênero ocidental, o romance. Ele toma esse gênero e o submete a uma africanização radical, que desmonta suas estruturas.
O começo do relato não é, evidentemente, o “descobrimento” da América, mas a prisão e o exílio de Xangô, o filho de Iemanjá que unificara os reinos do Níger. Das cinco grandes partes em que se divide o romance, a primeira, “As Origens”, é narrada em verso e antecipa o degredo em terras longínquas. Eu traduzo a seguir um trecho em que, depois de evocar os catorze orixás paridos por Iemanjá, Ngafúa, dirigindo-se ao Muntu (forma singular de Bantu, ou seja, “os homens”, “o povo”, com a ressalva de que o conceito inclui animais, vegetais, minerais, vivos e mortos), relata a prisão e o exílio de Xangô:
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Escuta Muntu que te afastas
as passadas, as vivas histórias
os gloriosos tempos de Xangô
e sua trágica maldição.
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Eléyay, ira de Xangô!
Eléyay, fúria da dor!
Eléyay, maldição das maldições!
Por vingança do rancoroso Loa
condenados fomos ao continente estranho
milhões de teus filhos
cegos manatis em outros rios
buscando as origens perdidas.
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Por séculos e séculos
Ilé-Ifè a Cidade Sagrada
mansão dos Orixás
nunca esquecerá a inapagável mancha
a sinistra rebelião
contra o glorioso Xangô
terceiro soberano de Oyo
e sua nunca igualada vingança
quando prisioneiro e no exílio
ao Muntu condena a sofrer
seu próprio castigo.
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Naquela época…
Muntu que esqueceis as passadas, as não mortas histórias
o furibundo e generoso Xangô
odiado por seus súditos
venerado por sua glória
a seus irmãos fez guerra
a Orum, cujo escudo é o sol
a Oxóssi, construtor do arco e da flecha
a Oke, habitante dos montes e dos cumes
a Olokun, enamorado dos machos
e até o doce Oko
o músico, o poeta
que fertiliza a terra com sua graça
as flautas, a kora, as trompetas
para dançar com elas, arrebatou.
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Xangô, infatigável procriador
entre guerras, cavalgaduras e estribos
no intocado surco de suas irmãs
semeava a semente fértil
cepa das múltiplas tribos.
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A Obá, espiã de sua formosura
para sempre nas noites
escondida entre as lagunas
entre todas, quis por esposa
e para que não tivesse paz em sua loucura
zelosa Orixá de seus passos
pôs cem olhos em sua cara
cem ouvidos
cem narizes
a pele sensível aos aromas
guardiã eterna de seu falo.
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Oya, voluptuosa corrente
úmido, cheiroso corpo do Níger
sua preferida concubina
sua outra irmã
com suas mãos, seus braços de água
depois das terríveis batalhas,
as feridas, o sangue, lhe banhava.
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Mas não era menos consentida
sua irmã menor, Oxum
espírito dos rios e das lagunas
em seus seios de águas retidas
dormia seu sono o Orixá.
O tempo furtado a seus amores
consagrou às armas
à invenção do raio e dos trovões
adestrando cavalos que voaram pelos céus.
A seus mais hábeis gladiadores:
Ao nobre Gbonka!
A Timi, o valente!
Ensinou-lhes o tiro da lança
a caça noturna do leopardo
burlar o nó corrediço da serpente
romper os invisíveis fios da aranha.
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O poema prossegue por vinte páginas até o momento em que Ngafúa entreouve a voz do próprio Xangô legar aos descendentes de Obafulom, que o expulsaram da cidade sagrada de Ilé-Ifè, o desterro em outros mundos, a escravidão e a prometida redenção, na qual os descendentes do orixá libertariam também “a índia mãe de teu filho”, “a violada avó pelo amo” e “o mulato nutrido com teu sangue”.
Daí em diante, pelas próximas 500 páginas, o relato será contado em prosa, a partir da captura de escravos na região do Níger, narrada com detalhes, dos suicídios dos Carabali-Bibi ao colaboracionismo de muitos Diola (subgrupo da grande família Mandé, das terras altas da Costa do Marfim), que participaram do tráfico negreiro como capatazes das “Lobas Brancas” (portugueses e espanhóis, curiosamente referidos no texto com um termo feminino), até o horror do navio negreiro, contado espetacularmente, em duas vozes. Uma fixa, indicada por itálicos, espanhola, relata os cálculos do colonizador. Outra, impessoal e flutuante, assumida por vários africanos ao longo da jornada, narra a luta contra a morte.
Apesar das dezenas de narradores, o relato mantém sua unidade, como dito acima, porque através de todas as vozes fala o espírito de Ngafúa, que ouviu a profecia de Xangô sob a sombra do baobá. Ele se renova num parto acontecido já em Cartagena de Índias, em que Potenciana Biojo dá à luz ao protegido de Exu, que será batizado com o nome cristão de Domingo, mas que todos os negros chamarão de Benkos, pois assim se chamava o tataravô rei semeou sua kulonda, a semente física e espiritual com que, entre os Banto, o ancestral auspicia o nascimento de uma criatura. Benkos é “o menino mas que já era um velho. Doze anos tem e já levantava sua vara de touro” [Nota: esse tipo de construção aparentemente agramatical, em que se misturam os verbos no presente e no imperfeito – “doze anos tem e já levantava...” – é uma das marcas registradas da prosa de Zapata Olivella, e vai criando uma temporalidade de sonho ao longo do romance, na qual os eventos parecem acontecer numa espécie de tempo ao mesmo transcendental e encharcado de História, imemorial mas sempre presente].
Na quarta parte, “Os Sangues Encontrados”, o leitor acompanhará o espírito de Benkos em acontecimentos históricos nos quais a participação negra foi sistematicamente apagada: as independências bolivarianas e a Inconfidência Mineira. Nesta, Ngafúa, mensageiro de Xangô, acompanha o Aleijadinho e narra uma versão da revolta que muito brasileiro lerão estupefatos, tanto com a fina pesquisa histórica de Zapata Olivella como com a rasura sistemática da presença negra na revolta.
Não surpreende, claro, que trinta anos tenham se passado da publicação desse romance monumental, profundamente afro-americano e afro-brasileiro, sem que dele tenhamos tido muita notícia no Brasil. Urge, evidentemente, uma tradução ao português mas, enquanto isso, se você quiser se aventurar pela obra em espanhol, é só clicar aqui e baixar a maravilha em pdf.
Abobó!
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