Blog do André Setaro
A morte recente do realizador cinematográfico Paulo Cezar Saraceni vem desfalcar ainda mais a turma do Cinema Novo, considerando que ano passado Gustavo Dahl, outro prócere do cinemanovismo também veio a falecer. Saraceni e Dahl podem ser considerados dois dos mais importantes cineastas e ativistas pela renovação da linguagem cinematográfica nacional a partir dos anos 60. A bem da verdade, Saraceni tem uma filmografia mais fulgurante do que Dahl, que se destacou como crítico, gestor cultural, ainda que realizador bissexto (O bravo guerreiro, Uirá, Tensão no Rio). Assim como o colega e amigo Dahl, Saraceni também estudou no Centro Sperimentali di Cinematografia, quando ficou fascinado pelo cinema de Roberto Rossellini, seu mestre e inspirador. Cria do autor de Roma città aperta, principalmente na preocupação que tinha em seus filmes na desdramatização do roteiro, Saraceni é autor de um dos mais importantes filmes do Cinema Novo: Porto das Caixas (1962), baseado em Lúcio Cardoso, e com partitura musical feita especialmente pelo maestro Antonio Carlos Brasileiro de Almeida\Jobim. Nove anos mais tarde, o mesmo Jobim se prontificou para a trilha sonora de Crônica da casa assassinada (1971), também, como em Porto das Caixas, baseado em Lúcio Cardoso, escritor pelo qual Saraceni tinha imensa admiração.
Na Mostra Tiradentes de janeiro de 2011, Paulo Cezar Saraceni foi o grande homenageado do evento, participando das mesas de debates, mas já se notava nele certa dificuldade de expressão, de articulação, consequência da doença que o corroia. Saraceni levou, para exibi-lo em primeira mão, o seu derradeiro filme, O gerente, produzido com a ajuda dos amigos que já pressentiam que seria o seu canto de cisne. O cinema de Saraceni, sobre ser cinema um tanto irregular na sua filmografia, tem fortes momentos e belos filmes, a exemplos dos citados e O viajante, mal compreendido pela crítica (o público foi mínimo porque o filme não teve uma distribuição decente). Um cinema pessoal, de autor, conduto de uma visão de mundo e com um universo ficcional próprio do ponto de vista cinematográfico. Seu ponto mais fraco: Capitu (1967), baseado em Dom Casmurro, de Machado de Assis. Filme de estrutura narrativa desregulada, equivocado na escolha da atriz do papel título, aquela moça de olhos oblíquos e dissimulados, que Machado descreveu com genialidade, que foi, no filme, interpretada pelo inexperiente Isabella (que era, na época, a sua companheira). Custa crer que o roteiro foi escrito por Paulo Emílio Salles Gomes e Lygia Fagundes Telles. Mas, segundo aqueles que leram o roteiro, este é bom. Então, no caso, o resultado final desastroso cabe a Saraceni. Outro filme que também não alcança um resultado satisfatório é Ao sul do meu corpo (1982), amparado num livro de ficção de Paulo Emílio.
Da turma do Cinema Novo, Glauber Rocha foi o primeiro a morrer em agosto de 1981 aos 42 anos de idade, causando estupefação entre seus admiradores, pois ainda jovem para entrar na chamada eternidade. Depois veio Joaquim Pedro de Andrade (o realizador de O padre e a moça, Macunaíma, Guerra conjugal, Os inconfidentes, entre outros), consumido por um câncer no pulmão. Leon Hirszman (A falecida…) se foi na segunda metade dos anos 80 vitimado pela AIDS (dizem que a pegou numa transfusão de sangue). Ano passado, o vigoroso Gustavo Dahl, que morreu de repente, enfarte agudo do miocárdio, enquanto, descansando na paradisíaca praia de Trancoso (Bahia), assistia entusiasmado a um filme. E agora Saraceni, que já estava internado há vários meses num hospital no Rio e teve falência múltipla dos órgãos.
Carioca, nasceu no Rio em 1933 (segundo o Dicionário de Cineastas Brasileiros, de Luiz F.A. Miranda), vindo a falecer aos 78 anos. Na sua juventude foi jogador de futebol (juvenil do Fluminense), nadador e praticante do pólo aquático. Interessou-se pelo cinema através das sessões da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio, aonde vem a conhecer as obras de Chaplin, Eisenstein, Rossellini, entre outros grandes mestres, e realiza, em 1957, o primeiro curta: Caminhos. A seguir, com Mario Carneiro, Arraial do Cabo (1959), filme aplaudido e premiado através do qual conseguiu uma bolsa para estudar na Itália no Centro Experimental de Cinema. Conhece, lá na Itália, Gustavo Dahl, que também estuda no centro, além de Glauco Mirko Lauretti. É colega de turma de Bernardo Bertolucci, Marco Bellochio (com o qual, inclusive, faz o roteiro de L'alba romana, 1961), Guido Cosulich (que anos mais tarde seria o diretor de fotografia de O desafio, que considero o seu melhor filme). De volta ao Brasil, ajuda a fundar o Cinema Novo ao lado de Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Carlos Diegues, Alex Viany, Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra, entre tantos outros. No manifesto do Cinema Novo está escrito: "uma proposta diferente de Hollywood, da chanchada da Atlântida e do cinema da Vera Cruz, mais próximo do neorrealismo, com planos longos, influência do cinema russo."
As sessões da Cinemateca do MAM do Rio se constituíam em pontos de encontros das pessoas que gostavam e que queriam fazer cinema. Havia um ambiente completamente diferente na época de Saraceni, Glauber, Dahl, e amigos, um clima propício à discussão cultural e ao debate de ideias. Muitos dos cineastas se conheceram nas sessões da Cinemateca, porque, diferente dos dias de hoje, sabiam apreciar a arte do filme, iam, para ser mais sintético, muito ao cinema. Infelizmente, a Cinemateca fechou suas portas e a grande quantidade de latas de obras preciosas e primas não se encontram em boas condições de conservação. Todo mundo se conhecia, pelo menos, de vista.
O primeiro longa de Saraceni, Porto das Caixas, foi muito bem recebido pela crítica em 1962. Irma Alvarez, argentina de nascimento e brasileira por adoção, é uma mulher que procura um amante para que possa se livrar do marido. A atmosfera propicia a convulsão dos personagens, bem de acordo com os delírios do escritor Lúcio Cardoso. A partitura de Jobim dá força às imagens. No elenco, além de Alvarez, Reginaldo Faria, Paulo Padilha, Margarida Rey, Sérgio Sanz.
O desafio (de 1965, um ano depois do golpe militar) retrata a crise existencial de um jornalista de esquerda (Oduvaldo Vianna Filho), impotente diante do golpe, e também em crise em seu relacionamento amoroso com a mulher de um rico industrial. Um filme de perplexidades, que expõe o marasmo da classe média brasileira. Obra urbana, que difere do ruralismo praticado pelo Cinema Novo, seguindo os postulados de São Paulo S/A, de Luis Sérgio Person. E o elenco é muito bom: Joel Barcellos, Maria Bethânia, Sérgio Britto (o grande ator que faleceu há pouco), João do Vale, Isabella, Zé Keti, entre outros. O filme reflete bem o espírito de uma época.
Quanto a Capitu, já se disse aqui sobre o desastre constituído. Mas Saraceni, depois deste, fica 5 anos sem fazer cinema até que, em 1973, reúne os amigos para uma ode ao espírito carnavalesco (quase ao mesmo tempo, Carlos Diegues faz Quando o Carnaval chegar, com Chico, Bethânia e Nara). Amor, carnaval e sonhos tem a esfuziante Leila Diniz (creio que seu último trabalho em cinema), Arduíno Colassanti, Ana Maria Miranda, Hugo Carvana, Isabel Ribeiro, Paulo Cesar Pereio, Monsueto. O Carnaval sempre atraiu o cineasta, sendo seu penúltimo filme um documentário: Banda de Ipanema – Folia de Albino (2003).
Em 1971, usando a tela larga, o cinemascope, Saraceni volta ao seu locus temático preferencial: o universo de Lúcio Cardoso em Crônica da casa assassinada. Norma Bengell é o elemento que deflagra um processo de corrosão numa casa de família mineira imbuída de fortes laços com as tradições interioranas. Partitura funcional de Jobim. Outros atores: Rubens Araújo, Nelson Dantas, Carlos Kroeber, Leina Krespi, Tetê Medina.
Anchieta, José do Brasil (1977) e Ao sul do meu corpo (1982) são filmes menores de Saraceni, sendo que o primeiro é produzido na época de ouro da Embrafilme, recursos infinitos, mas com um resultado aquém do que se poderia esperar. Já Natal da Portela foi um filme injustiçado, quase não lançado comercialmente, posto a escanteio, talvez pela peculiaridade estilística de Saraceni na desdramatização do roteiro dentro da linha rosselliniana. Milton Gonçalves faz o papel principal com particular desenvoltura. Bahia de todos os sambas, lançado em 1996, é um documentário sobre um grande show de música brasileira em Roma ocorrido em 1973. Saraceni filmou muitas horas, mas não conseguiu recursos para a pós-produção. Esperou apenas 23 anos para vê-lo concluído e na tela.
Baseado num romance inacabado de Lúcio Cardoso, O viajante, livro organizado por Otávio de Faria depois da morte do escritor, completa, em 1999, a trilogia iniciada com Porto das Caixas em 1962 e seguida por Crônica da casa assassinada em 1971. Obra densa, por vezes cruel, mas de uma intensidade forte na captação da compulsão humana e suas idiossincrasias tão caras a Cardoso como a Saraceni. É a história de três seres humanos que, desesperados, chegam aos limites da paixão. Rafael (Jairo Mattos), o viajante, participa de uma festa da padroeira de uma pequena cidade do interior de Minas Gerais. É ele quem desperta paixão em Don'Ana de Lara (Marília Pêra), a viúva rica e orgulhosa de seus poderes e também em Sinhá (Leandra Leal), menina bela e inocente. Ambas vão disputar seu amor, cada uma à sua forma.
O gerente fecha a filmografia de Paulo Cezar Saraceni. Vejam o trailer aqui na coluna.
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