SÉRGIO AUGUSTO - O Estado de S.Paulo
Soube da morte de Marilyn Monroe por uma amiga. Ali pelo meio de um domingo convenientemente nublado, o telefonema ominoso: "Acabei de ouvir no rádio que a Marilyn morreu". Acidente de carro?, perguntei. "Não. Parece que ela se suicidou." Sem experiência com a morte de parentes ou amigos próximos, a morte de Marilyn, que hoje completa 50 anos, me deixou inusitadamente arrasado; até então nunca havia lidado com o desaparecimento de alguém com presença tão marcante em minha vida ainda tão pouco vivida.
Sua mais remota aparição diante dos meus olhos e ao alcance de minha palmar cupidez deu-se nas páginas da revista O Cruzeiro, no início dos anos 1950: ela metida num vestido feito de saco de aniagem para marquetar a ideia de que com qualquer invólucro a mais promissora estrelinha da Fox era um prodígio de elegância carnal. Foi minha primeira epifania voyeurística. A sexualidade da minha geração tem um débito incalculável com Marilyn Monroe.
Algum tempo se passou até que eu passasse a desfrutá-la na tela, como Rose Loomis, Lorelei Lee, Kay Weston, a levar marmanjos à loucura, induzi-los ao uxoricídio, ao adultério - ou simplesmente domesticá-los, como a desajeitada crooner Chérie fez com o caubói capiau de Nunca Fui Santa. Se a garota (ou o pecado) que na verdade morava em cima, não ao lado, extravasou o sex-appeal de Marilyn, explorando-lhe todas as curvas do corpo, em especial seus dotes calipígios, e plasmando sua pose mais mítica, com a saia esvoaçante sobre a grade do metrô, a angelical garota de Nunca Fui Santa adocicou-lhe a sensualidade, metamorfoseou a Vênus platinada numa criatura prosaica, frágil e vulnerável.
Marilyn ainda encarnaria três outras Afrodites de ribalta, Elsie (a corista de O Príncipe Encantado, cujas filmagens inspiraram o recente Sete Dias com Marilyn), Sugar Cane (a esfuziante flapper de Quanto Mais Quente Melhor) e Amanda Dell (a romântica dançarina de Adorável Pecadora), mas a candura projetada por Chérie e o desamparo estampado em cada gesto da Roslyn Taber de Os Desajustados marcaram sua imagem até o fim. Foi com essa persona - de mulher meiga, carente, desestabilizada emocionalmente e também deixada na orfandade pela indústria que ajudara a resistir ao impacto da televisão - que a mídia a pranteou em agosto de 1962. Com a pieguice de praxe.
Só este que agora aqui celebra a perene vitalidade do mito MM cometeu, na época, dois necrológios pateticamente sentimentaloides. Deles Marilyn emergia como uma santa imolada no altar do cinema, uma vítima das injunções mais mesquinhas da "usina de sonhos" de Hollywood, o que só em parte era verdade. Marilyn nunca foi santa; mártir do sadismo patriarcalista dominante no business cinematográfico, talvez tenha sido.
Na mais célebre biografia da atriz, publicada em 1973, Norman Mailer chamou-a de "doce anjo do sexo" e comparou o açucarado sexo que ela exalava ao som de um violino. "Sexo é parte da natureza; eu me dou bem com a natureza", Marilyn proclamou numa entrevista, na vã tentativa de encerrar uma discussão bizantina sobre seu jeito desinibido de ser. Sua exacerbada sexualidade, para alguns tributária dos abusos que sofrera na infância, acabou assimilada pelas feministas como uma afirmação de superioridade da mulher com pleno domínio de suas armas de sedução.
O olhar mormacento, a um só tempo sapeca e inocente, os lábios ligeiramente entreabertos, a voz sussurrante, a gestualidade dengosa, o rebolado voluptuoso e inimitável - nenhuma outra diva cinematográfica soube explorar seu arsenal de sedução com tamanha convicção e igual ressonância. Na certa influenciado pelo ar meio sonso que a miopia impunha à atriz, o fotógrafo Cecil Beaton definiu-a como "uma ninfômana hipnotizada", cujo sorriso, radiante e frequente, acrescento, jamais conseguiu disfarçar a intensa tristeza que seus olhos traíam.
Sem berço, pai desconhecido, mãe louca, mal casada dos 16 aos 20, operária de fábrica, Norma Jean Mortensen tinha tudo para não dar certo. Usando astuciosamente o corpo, ascendeu a miss (foi até a Rainha da Alcachofra da Califórnia, em 1947), modelo e pin-up de calendário de posto de gasolina. Nua em pelo sobre um tapete vermelho, virou a primeira playmate da Playboy. Pela pose histórica ganhou US$ 50, um dos melhores investimentos do século passado.
Àquela altura, já aparecera discretamente em duas dezenas de filmes, com maior destaque em A Malvada e O Segredo das Joias, sempre no papel de loura burra. Ainda era uma modesta starlet, sem pejo de vender favores sexuais aos mandachuvas dos estúdios, quando a foto na Playboy acelerou sua ascensão a estrela.
Nenhum outro mito feminino da cultura pop permaneceu em evidência durante tanto tempo: 15 anos diante das câmeras, 50 anos numa cripta do Westwood Memorial Park. Seu culto já atravessou três gerações, renovando e multiplicando o número de fiéis, inclusive entre seus presuntivos avatares. Madonna prestou uma homenagem a Os Homens Preferem as Louras no videoclipe Material Girl. Lindsay Lohan e Megan Fox colecionam tudo o que da atriz encontram em lojas e leilões, e não se cansam de plagiar seu estilo intransferível em fotos para revistas de fofocas. Lohan mandou tatuar no pulso um mantra marilyniano: "Todo mundo é uma estrela e merece cintilar". Nenhuma cintilou mais que Marilyn.
Beneficiada por uma conjunção de fatores-tinha um corpaço (1,66 m de altura, 94 cm de busto, 58 cm de cintura e 92 cm de quadril), talento para comédia, vocação para cantora e dançarina, trabalhou com diretores de peso como Fritz Lang, Joseph L. Mankiewicz, Otto Preminger, Joshua Logan, duas vezes com John Huston, Billy Wilder e Howard Hawks -, ainda por cima fez carreira numa época em que as mulheres, ad gloriam luxuriae, não deformavam o corpo com silicone e botox, não banalizavam seu sex-appeal tirando a roupa como quem acende um cigarro, nem se expunham ao ridículo e à vulgaridade exibindo as partes pudendas e cafungando cocaína para as lentes dos paparazzi.
Por ordem do estúdio, Marilyn vestiu duas calcinhas brancas para rodar a cena do vestido esvoaçante de O Pecado Mora ao Lado. Uma apenas deixaria transparecer os pelos pubianos da atriz, tabu no cinema americano da época. Há 60 anos, as estrelas da tela não só não se siliconavam como não cultivavam o hábito de barbear a genitália. Os pelos de Marilyn só seriam vistos, in natura, nos stills da filmagem de Something Gotta Give, seu último mas inacabado filme.
O site da Amazon vende 22.475 produtos relacionados à atriz, desde livros, CDs, DVDs, pôsteres e roupas até um enorme decalque de parede com seus lábios rubros e uma frase de sua lavra. A princesa Diana tem um terço disso e Madonna, menos de um quarto, quase o mesmo montante de Elizabeth Taylor, que fez muito mais filmes do que Marilyn e morreu faz pouco tempo. Liz Taylor esbanjava glamour, brilho de estrela, mas desencarnou desprovida dos encantos de outrora, idosa e adiposa. Ao menos nas fotos, Marilyn ainda estava linda e luminescente aos 36 anos, quando uma dose letal de barbitúricos a tirou de cena para sempre.
Nunca uma mulher inspirou tantos livros. Mesmo que juntássemos tudo o que se escreveu sobre Elizabeth I, Mary da Escócia, Eleanor Roosevelt e Florence Nightingale, a pilha de obras inspiradas em Marilyn continuaria maior. Só em 2010, mais seis livros sobre ela chegaram às livrarias, um dos quais com as memórias que Andrew O'Hagan inventou para o cão maltês (Maf) que Marilyn ganhou de Frank Sinatra, pouco depois de a atriz se divorciar do dramaturgo Arthur Miller e entrar, novamente, em parafuso. Outros já estão no prelo e outros mais serão escritos, oxalá sem aquelas xaropadas conspiratórias envolvendo a Máfia e a Casa Branca.
Marilyn, bobagem insistir na outra tese, simplesmente se matou. Se inadvertidamente, nunca se saberá. Entupia-se havia décadas de sedativos e soníferos, dormia nas horas erradas, atrasava-se para as filmagens, tinha brancos diante das câmeras, ausentava-se semanas a fio por doenças concretas ou somatizadas. Seus constantes forfaits é que levaram ao súbito cancelamento de Something Gotta Give. Por trás de todas aquelas curvas, escondia-se um sanatório.
Era disléxica e bipolar, sofria de endometriose (uma doença uterina), tinha cólicas e pesadelos intermináveis. Penou um bocado para superar a gagueira, mas na timidez e na insegurança nunca deu jeito. Para manter-se bela e viçosa, lavava o rosto 15 vezes por dia e hidratava-se com potes e mais potes de creme Nivea. O medo de ficar louca, como a mãe, levou-a a frequentar uma analista após separar-se do segundo marido, o astro de beisebol Joe DiMaggio, em outubro de 1954. Frequentou mais dois divãs, o da austríaca Marianne Kris, amiga de Anna Freud e herdeira de 25% da herança deixada pela atriz, e o do dr. Ralph Greenson, que foi o primeiro a ver o corpo de Marilyn, inerte e despido sobre a cama, naquele trágico domingo de agosto.
* "roubado" da página do meu amigo André Setaro no facebook. RS
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