RIO - Não há o que Ney de Souza Pereira — o homem — não tenha dito sobre Ney Matogrosso — a obra. Nas duas milhões de páginas que citam o artista, na internet, habitam um sem-número de entrevistas em que ele relembra ter: namorado Cazuza (“Foram três meses de relacionamento com labaredas de dois metros de altura”); cheirado cocaína (“Odiava. Nunca entendi, achava aquilo uma mentira”); namorado mulheres (“É muito mais difícil as pessoas aceitarem que eu transo com mulheres do que com homens”); ido para a cama com 15 pessoas (“Ninguém trepa! Você deita em cima daquele topo, aí vai caindo lá pra baixo”); perdido amigos para a Aids (“Fiquei sem referência, parecia que tinham quebrado todos os espelhos à minha volta”); ter permanecido imune à doença (“Não me peça explicação porque eu não sei dar. Eu tenho certeza que tive contato com o vírus”).
Na música, Ney Matogrosso também teve carreira tão intensa quanto na vida. Nos anos 70, integrou o Secos & Molhados, grupo performático que, junto com os Mutantes, salpicou rock e transgressão na MPB. Em carreira solo, tocou ao lado do violonista Raphael Rabello, do clarinetista Paulo Moura, do pianista Arthur Moreira Lima. Gravou canções com Caetano Veloso, Chico Buarque e Pedro Luís. Com sua voz aguda e feminina de contratenor, cantou Cartola, Tom Jobim, Villa-Lobos. Aos 71 anos de idade, 40 de carreira, 38 discos gravados, prepara-se para mais uma etapa. “Atento aos sinais”, turnê iniciada em março, em São Paulo, desembarca no Rio a partir de sexta-feira, com três shows no Vivo Rio. Em cena, além de interpretar Itamar Assunção, Criolo e Vitor Ramil, o cantor usa mais de uma dezena de figurinos.
Ney Matogrosso já foi comparado a Josephine Baker pela imprensa francesa, descrito como uma mistura de Carmen Miranda, David Bowie e Jack Nicholson pela americana. Já subiu no palco usando penas de pavão, unhas de tigre, chifres de carneiro, cocares, paetês, pérolas e, claro, pele (a própria, praticamente nua). Rita Lee assim descreveu a primeira vez que o viu em ação, ainda na época do Secos & Molhados: “Um ET elegante vestindo um kabuki mucho louco com uma voz assexuada, cantando uma ciranda portuguesa.” Sobre um palco, como bem definiu o nome de sua turnê em 2008, sempre foi inclassificável.
Mas e fora dele? O que Ney Matogrosso — a obra — tem a dizer sobre Ney de Souza Pereira — o homem? Quanto do artista que atravessou o desregramento sexual da década de 70, a oferta infinita de drogas dos anos 80 e a perda dos amigos nos anos 90 sobrevive no senhor solteiro, sereno, que mora com dois gatos, numa cobertura de três andares no Leblon?
— Se não houvesse o Ney Matogrosso, talvez eu me ressentisse de não atuar artisticamente. Eu não estaria completo — responde ele, durante uma das três conversas com a Revista O GLOBO, na última semana. — No começo, eu era muito agressivo no palco. Se não fosse, seriam comigo. Hoje subo nele de uma maneira amorosa.
Nascido em Bela Vista, no Mato Grosso do Sul, Ney é o segundo de cinco filhos de uma família de classe média. Aos 6 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde morou no bairro de Padre Miguel, até voltar ao seu estado natal — dessa vez morando em Campo Grande — cinco anos depois. Fã de Elvis Presley, chegou a ter topete igual ao do músico na adolescência. Mas seu pai, militar da Aeronáutica, impediu-o, desde cedo, de dar vazão ao lado artístico.
— Eu pintava, fazia retratos. Pedi um curso para o meu pai, que disse que não queria filho artista — lembra. — Fiz teatro escondido. Costumo dizer que eu dei sorte de ter nascido filho de militar, porque isso já me colocou como transgressor. Sempre contestei as decisões dele.
A juventude seguiu conturbada. Aos 17 anos, após a primeira e única troca de socos com o pai, resolveu sair de casa. Alistou-se na própria Aeronáutica (que aceitava recrutas com sua idade) e, uma vez aceito, pediu transferência de Campo Grande para a Base Aérea do Galeão, no Rio. Pelos dois anos seguintes, aprenderia a dar tiro (“Era Colt 45, mas nunca me interessou a arma”) e, sobretudo, a tomar as rédeas de si mesmo:
— Eu era muito duro. Na adolescência, tinha vergonha das minhas mãos. Vivia com elas no bolso. Eu também não tirava a camisa, por vergonha. Até que fui para o quartel, tendo que tomar banho com 20 camaradas ao mesmo tempo. Percebi que ninguém ali via o monstro que eu me achava.
Também no quartel, Ney presenciaria, pela primeira vez, uma troca de beijos entre dois homens. Estavam abraçados, sentados sobre uma mureta, durante uma madrugada quente.
— O único exemplo de homossexual que eu tinha visto era o de um travesti em Campo Grande — diz. — Na Aeronáutica, vi que essas coisas rolavam, e que eu não tinha que me transformar. Gosto de ser homem.
Até então, Ney havia tido relações sexuais e namoros com mulheres (perdera a virgindade aos 13 anos, com uma prima distante, na fazenda de seu avô). Decidiu que tentaria com um homem, mas só quando surgisse uma ocasião especial.
— Eu queria que alguém me motivasse a ponto de realizar — explica.
A ocasião surgiu aos 21 anos, quando trabalhava no Hospital de Base de Brasília, fazendo lâminas de exames. Foi, ao mesmo tempo, um alívio e uma decepção:
— Pensei: “É isso? Esse tempo todo sofrendo, penando num vale de lágrimas, para isso?” Não ficou escrito na minha testa, marcado a ferro. Perdi tanto tempo me debatendo por uma coisa que era simples, normal.
A decepção veio logo depois:
— Fui da libertação ao inferno. Eu achava que relação entre homens era de igual para igual. Aprendi que não faz diferença: é o velho ciúme. Depois, por muito tempo, não quis namorar ninguém.
Aos 25 anos, decidido a ser ator, voltou para o Rio. Trabalhou com artesanato, tomou daime, viveu uma vida religiosamente desregrada. Quatro anos depois, por intermédio de sua amiga Luhli (da dupla Luhli e Luciana), professora de canto e compositora, foi apresentado ao jornalista João Ricardo, que buscava um homem de voz aguda para capitanear sua banda, Secos & Molhados. Até então, Ney havia cantado apenas num coral de 60 pessoas em Brasília (onde o maestro elogiara-lhe a voz) ou em boates, de forma amadora. Ele não sabe ler música.
O encontro ocorreu em 1971, em São Paulo. João Ricardo gostou do que viu (um rapaz de 53 quilos que se movimentava no palco como se fosse um animal indomado) e do que ouviu (uma voz de contratenor sem igual em qualquer outra banda brasileira). Dali a dois anos seria lançado o primeiro disco. O Secos & Molhados se tornaria um sucesso instantâneo, vendendo 700 mil cópias. Para preservar o anonimato — um dos únicos bens conquistados nos 31 anos de vida — Ney de Souza Pereira decidiu subir ao palco com a cara escondida atrás de uma forte maquiagem.
— Ouvia falar que artista não tinha vida privada, não andava na rua. Eu tinha 31 anos, não queria perder minha liberdade. Minha inspiração foi a maquiagem usada pelos atores do teatro kabuki — ressalta.
Havia, ainda, uma segunda razão:
— Percebi que, escondendo o rosto, eu sentia uma coragem e uma liberdade física que jamais supus ter. Quando subia ao palco, pensava em personagens. Eu queria ser um inseto. Eu botava uma peruca de crina de cavalo e e me sentia um ser dos Andes. Depois do gostinho, não voltei atrás.
Nascia, ali, o artista Ney Matogrosso.
Aquela formação do Secos & Molhados teve vida curta. Em 1974, Ney desentendeu-se com João Ricardo, que decidira rever os critérios de divisão do dinheiro. Após gravar o segundo disco, abandonou a banda.
— Ele tem essa coragem de ser ele mesmo, de não se submeter. Teve que pagar uma multa colossal — lembra Luhli.
Lançou-se, então, em carreira solo. Do Secos & Molhados, manteve a postura libidinosa e o figurino onírico — que se tornariam, junto com a voz aguda, sua marca registrada.
— Na época da ditadura, os militares tinham metralhadoras, e eu tinha minha libido como arma. É um prazer enorme poder brincar com a libido, poder trocar de roupa no palco, na frente das pessoas. Mas sempre tive a preocupação de não ser vulgar. Isso foi o limitador — diz.
Manteve a estética extravagante até lançar “Pescador de pérolas”, em 1987. O disco, intimista, foi um divisor de águas em sua carreira. Ney se fez acompanhar dos músicos Raphael Rabello, Paulo Moura e Arthur Moreira Lima, respectivamente os grandes nomes do violão, da clarineta e do piano de então:
— Até esse disco, eu só sabia fazer as coisas escandalosamente. Fui me testar, ver se eu era um cantor de verdade ou apenas o que falavam de mim.
A partir dali, voou em céu de brigadeiro. Como músico, ganhou três discos de ouro e outros três de plantina. Como iluminador, dirigiu a luz de shows de Chico Buarque, Nana Caymmi e Nelson Gonçalves. Como ator, estrelou o curta-metragem “Depois de tudo”, de Rafael Saar, e o longa “Luz nas trevas”, de Helena Ignez e Ícaro Martins. Foi retratado no documentário “Olho nu”, de Joel Pizzini, exibido este ano no Festival de Brasília.
Em paralelo, Ney entrou de cabeça numa campanha em prol dos portadores de hanseníase. O convite surgiu ao acaso, quando recebeu uma ligação por engano, endereçada ao ator Ney Latorraca.
— Volta e meia sou chamado de Latorraca na rua. Aceno de volta — diz, resignado.
Dias antes, Latorraca (o original) havia declarado, numa entrevista, que, quando morresse, deixaria a herança para os portadores de hanseníase. Ao ouvir a história pelo telefone, Latorraca (o Matogrosso) se surpreendeu:
— Perguntei: “Mas ainda existe isso no Brasil?” Comecei a dar trela para o assunto.
Esteve com José Serra, ministro da Saúde do governo Fernando Henrique (“Ele foi indiferente. Fiquei chocado. São mais de 40 mil pessoas infectadas por ano”), e com Lula, que instituiu uma pensão indenizatória para os pacientes que foram internados à força em asilos.
— Essa doença tem que ser banalizada, vulgarizada, para que acabe o preconceito, que é gigantesco — afirma. — Abraço e beijo todos. Para pegar a doença, tem que ter um contato regular.
Idealizador de duas caixas de CDs com a obra de Ney Matogrosso, o produtor Rodrigo Faour diz que, além da qualidade musical, Ney tem uma segunda característica menos lembrada: a integridade.
— Nunca conheci uma pessoa do tamanho dele que atenda ao telefone, que não coloque problema onde não tem. Ele me ensinou que você pode curtir, mas não pode acreditar no sucesso.
Quanto à música, teoriza:
— Ele não gosta de cantar o que já deu certo. Um show dele é como se fosse um espetáculo de teatro, um texto que ele prepara para o público. E o ator não quer fazer sempre o mesmo texto.
Insônia, personal trainer e astrologia
Ney tem, desde sempre, dificuldade para dormir. Quando está em turnê, leva fita crepe na mala, que usa para tapar eventuais entradas de luz nas janelas dos hotéis. Já tomou hipnóticos, que descartou, por demasiado fortes. Hoje faz uso de uma pílula de Frontal antes de se deitar.
— Na semana passada fiz um exame do sono em São Paulo. Passei a noite com eletrodos no peito e na cabeça. Fico achando que é vício, da época do Hospital de Base de Brasília.
No Rio, acorda por volta de nove da manhã. Recebe um personal trainerde segunda a sexta-feira, que o ajuda a treinar num sótão adaptado com aparelhos de ginástica. Almoça e janta em casa, pouco sai à rua. Diz ler muito (seu último livro de cabeceira é “Havia gigantes na Terra — Deuses, semideuses e antepassados humanos: a evidência do DNA alienígena”, de Zecharia Sitchin).
— É a teoria de um camarada da Nasa de que os seres da mitologia existiram — explica. — Leio sobre geologia, biologia, astrologia, astronomia. Não gosto de romance.
A decoração de seu apartamento segue uma lógica mais afetiva que estética. Uma poltrona está arranhada pelas unhas dos gatos Nego e Zula. Outra, coberta por uma bandeira de Pernambuco. Na sala, há uma estante com taças. No escritório, alguns livros velhos de botânica e arte. Três toalhas coloridas, com motivos de flores, repousam sobre uma cadeira perto da piscina; há cristais e pedras por toda parte. A maioria dos quadros nas paredes chegou ali presenteada pelos próprios pintores. Assim foi com três obras de Gilvan Nunes; assim foi com um retrato pintado em 1978 pelo goiano Siron Franco.
Televisão, assiste pouco. Música, só quando liga o rádio do carro. Sua festa de 70 anos, em 2012, foi sem som.
— Ele diz que música é trabalho. Queria que as pessoas conversassem — conta o amigo e diretor Joel Pizzini.
Quando vai para o sítio que tem em Saquarema, gosta de escutar o barulho da noite:
— Acendo uma vela e fico ouvindo a noite se instalar. Vai virando uma sinfonia. Já passei quatro horas com o gravador ligado, na mão, só ouvindo, com a sensação de estar dentro de uma coisa viva.
Não tem iPod. Seu aparelho de rádio é antigo e pequeno, com uma única entrada para CD. Vez por outra revisita seus discos.
— Dia desses, parei para ouvir de novo um que gravei com músicas do Cartola. Gostei. Achei os arranjos chiques — avalia.
Não atrela o que canta ao seu estado de espírito:
— Posso fazer um trabalho sobre o amor sem estar apaixonado. E um trabalho alegríssimo, estando triste.
Nunca entrou no Facebook. Soube que existe um perfil falso seu no Twitter, com quatro mil seguidores.
— Fica esse camarada lá falando o que bem entende — reclama.
Ney teve um relacionamento estável de 1980 a 1993, ano da morte de seu parceiro. Chegaram a morar juntos por sete anos. Desde então, teve alguns namoros, que não revela. Mas não se diz solitário:
— Não gosto de tumulto. Recebo e vou à casa de amigos. Mas gosto de ficar sozinho. Sempre estou fazendo alguma coisa, regando as plantas, costurando.
Seu pai morreu quando já tinham feito as pazes.
— Ele foi a figura mais importante da minha vida. Graças a ele sou a pessoa que sou — costuma dizer. — Depois das brigas tivemos conversas. Ele disse como se arrependia da forma que tinha criado os filhos homens. Fui o único filho que beijou ele a vida inteira. Se existe essa questão de carma, nós queimamos o nosso. O amor que passou a existir nos libertou.
Perdeu também sua gata Rita, dois anos atrás, de um problema súbito no pâncreas:
— A Rita dormia comigo, andava atrás de mim pela casa, que nem cachorro. Era o meu amor. Como eu havia perdido muitos amigos, pensei que fosse uma pessoa preparada para a morte — lembra. — Não era. Fiquei apático, não saía para a rua.
Ney se diz um ser noturno, um “vampiro”. Ao cair da tarde, deixa a casa na penumbra e observa o acender de luzes nos apartamentos do Leblon (seu prédio, de 14 andares, é mais alto que os demais do entorno). Diz que a cidade, nesse momento, lembra um presépio.
Continua magro, com 61 quilos. Aparenta menos que os 72 anos que completará em agosto. No seu último check-up, o médico diagnosticou que seu organismo é como o de uma pessoa de 50 anos.
— Não sei que idade eu tenho. Não me sinto um velho na cabeça e na vida — garante.
Usa roupas básicas: uma camiseta, um jeans, uma bota de couro. Chegou a passar produto contra queda capilar — que logo abandonou, por preguiça. Nunca tomou Viagra.
— Tenho medo de tomar. Você tem que conviver com essa coisa de broxar, faz parte da vida. Antigamente eu era entregue ao sexo, se não trepava, não dormia. Nunca me arrependi disso — lembra. — Hoje não diria que estou apaziguado, mas não tenho mais a ansiedade. Não sinto tesão se não tem carinho.
A primeira entrevista de Ney Matogrosso aconteceu 40 anos atrás, quando do estouro repentino do Secos & Molhados. Ficou aflito, até ouvir a pergunta inicial:
— Entrei em pânico. Mas uma coisa dentro de mim disse: “Fala a verdade.” Acredito que tenho o direito de ser a pessoa que eu sou.
É o que tem feito desde então. Numa cena do filme “Olho nu”, ele declara: “Não busco Deus fora. Busco dentro de mim.”