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terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

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BOM DEMAIS PARA SER VERDADE

De manhã, as vezes o Francis cantava. Não, não era absolutamente alegria de viver. Era para enganar a depressão. "Quem canta, seus males espanta", ele me dizia, sério. Francis cantava umas coisas antigas, jingles de rádio dos anos 50, marchinhas de carnaval da década de 40; quanto maior a melancolia da manhã, mais obsoleta e estapafúrdia era a recordação. Se ele abria o dia com "Edgar chorou, quando viu a Rosa, gingando toda prosa...", era um sinal de que a vida estava preta. Mas se o Francis -personagem de certa manhã- resolvia imitar o vozeirão do Cauby Peixoto (que admirava) ou um crooner americano, em canções que ele chamava de "babacário popular", e me seguia pela casa como um apaixonado "You're just too good to be true/ can't take my eyes of you...", eu podia estar certa que o dia lhe traria melhores possibilidades.

A década de 50, a infância, é a minha favorita. Nostalgia de um tempo que parecia mais inocente e feliz. Parecia. Francis, nascido em 1930, viveu intensamente aqueles anos, como adulto; e tinha recordações mais reais que as minhas. Ligava suas estórias curiosas, engraçadas, ou até escatológicas, a jingles de rádio e televisão. Conhecia intimamente os anos 60, e igualmente suas musiquetas comerciais. Gostava de me atazanar com "Só Esso dá ao seu carro o máximo, veja o que Esso faz. Só Esso Extra, Esso Extra..." Diante do meu espanto, e curiosidade, ele me detalhava os escândalos sociais e políticos da época (iguaizinhos aos atuais), deliciado com as recordações que lhe traziam, e imitando vozes e gestos. Ria ao lembrar como a rapaziada de seu tempo usava maliciosamente a antiga propaganda da Esso, "Ponha um tigre no seu carro!". E a musiqueta falsa-inocente que a Virginia Lane, conhecida corista do teatro de revista cantava num programa de TV para crianças, no qual ela se apresentava fantasiada de coelho, as fabulosas pernas de fora, e a que todos os pais assistiam? Dobro de rir só de lembrar o Francis caricaturando o coelho da Virginia, revirando os olhos, dobrando os braços como se fossem patinhas.

"Recordar é viver, dizia Tia Marocas" - era como o Francis arrematava os casos que transformavam seu humor matinal. Não lembro agora se tia Marocas era a Marocas do Pafuncio, personagem de história em quadrinhos, que o Francis imitava, tocando um piano imaginário, e se esgoelando, "um lindo jangadeiro, de olhos verdes cor do mar...".
O comercial da cera para assoalhos Parquetina, que o Francis parodiava, rimando com cretina, nas manhãs que a faxineira pedia que ele não entrasse na cozinha recém-lavada, quem lembra?

Ontem acordei com aquela conhecida sensação de perda. Peguei o jornal na porta e fiquei andando pela casa, com ele na mão, sem saber o que fazer. Já devia estar habituada a tristeza que me abate nessa data, quando enfrento o mesmo frio siberiano e as mesmas recordações. Mas pensei que, depois de seis anos, teria mudado. Não tomei conhecimento da nuvenzinha negra que há duas semanas ameaçava meu humor. Ontem de manhã a coisa começou a desabar.
Mas, espera aí... Ao escovar os dentes, já batalhando a inquietação, aquele jingle do passado brotou da minha cabeça, ou o Francis estava mesmo ali na porta do banheiro, cantarolando baixinho, "Três vezes ao ano, visite o dentista, três vezes ao dia, seja kolynosista", para me salvar da depressão matinal ?

De repente me deu uma saudável vontade de rir. E rindo olhei a cidade lá embaixo, coisa que o Francis gostava de fazer, e ainda pontificava, "Nova York deve ser vista de cima"; e constatei também que o céu estava totalmente azul, naquele tom que o Francis descreveu como "azul inocente" na manhã seguinte ao bombardeio do Iraque pelos americanos, em 1991.
Tenho que rir. O Francis acordava deprimido, mas já fazia declarações contundentes sobre questões políticas, sociais e culturais, e ainda me fazia rir com sua nostalgia por cultura pop do passado mais remoto. Tinha coragem de continuar. Desafiava a tristeza, diariamente.

Esta é a primeira vez que escrevo sobre o Francis. Rompi um silêncio que provavelmente não será repetido. Prefiro convidar os amigos antigos e os jovens admiradores do Francis a contarem aqui suas experiências pessoais com ele, como e quando o conheceram, em que sentido ele marcou sua vida, etc. Escrevi esta apresentação a pedido do Marcelo Vita, criador do Website, e porque me dei conta do meu silêncio (nos últimos dois anos e tanto trabalhei para as Nações Unidas no Timor Leste) e aparente falta de consideração com os cerca de 750 sites dedicados ao Francis. Conheço quase todos. São na maioria de gente jovem. São ótimos, inteligentes, criativos (um deles apresenta nossos três gatos!).

A editora W11, que fundei com o Wagner Carelli em novembro passado, acaba de lançar os dois primeiros romances do Francis, "Cabeça de Papel" (1977) e "Cabeça de Negro" ( 1979) , atendendo a curiosidade de milhares de jovens que vem procurando esses livros há 10 anos e não os encontram porque as editoras os deixaram esgotar. O interesse constante e crescente dos jovens pela obra do Paulo Francis me deixa comovida e, ao mesmo tempo, animada com o futuro. É uma gente que não desperdiça a manhã cultivando depressão. Sai dessa!

Foi a manhã de ontem que me deu ânimo para escrever a apresentação do Website, há semanas adiada. Pedi a companhia, o apoio de alguns amigos mais chegados. Não dava tempo de pedir colaboração a muitos. Os convidados atuais são apenas os primeiros dos muitos que virão. Assim esperamos.


Sonia Nolasco

http://www.paulofrancis.com/main/popups/sonia.htm

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