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domingo, 29 de julho de 2012

Jorge Amado na canção




SALVAÇÃO - Caetano Veloso

 

 

Jorge Amado mostra o Brasil agindo através de uma Bahia mítica


Uma das maiores emoções da minha vida foi causada pelas palavras de Mia Couto, o escritor moçambicano, sobre a importância de Jorge Amado na formação da literatura africana de língua portuguesa. Ele (que tem um irmão que se chama Jorge e outro, Amado) descreveu o impacto que teve sobre jovens africanos de uma geração anterior à sua o mundo que se move nas páginas do escritor baiano. Faz pouco, um amigo americano, ao ouvir-me contar essa história, disse-me que a presença de Jorge na literatura da África não se restringe ao mundo lusófono, as fabulações e figuras baianas, traduzidas para o inglês e o francês, tendo entrado no imaginário de autores nigerianos e marfinenses. Seja como for, o comentário de Mia me levara de volta a uma ideia poética que me inspira para atos e interpretações de atos da vida: a de que o uma das missões (talvez a principal missão) do Brasil é salvar a África.

Cheguei a essa formulação partindo de conversas que tive com o professor Agostinho da Silva, o maravilhoso português que, fugindo à perseguição salazarista, veio para o Brasil e, depois de estadas consequentes em Santa Catarina e na Paraíba, foi parar na Bahia. Ele costumava dizer que “Portugal já civilizou Ásia, África e América: falta civilizar Europa”. Eu adorava o desaforo. Agostinho tinha saído da Bahia e ido para Brasília (onde, ao lado de Darcy Ribeiro e outros, tentou fazer da UnB um laboratório civilizador, até que o golpe de 1964 destruiu as esperanças).

Ouvi uma palestra que ele fez, convidando voluntários para um trabalho de recuperação cultural da área de Cacheira e São Félix (nunca me esquecerei de ele dizendo que quem quisesse engajar-se no programa que ele propunha poderia — talvez de fato devesse — sentir angústia, nunca tédio). Mas só vim a conversar com ele quando eu já estava no exílio. Roberto Pinho fez a ponte, e fui vê-lo em Lisboa. Fui tímido e lacônico, mas ele disse a Roberto que eu pensava bem. Anos depois, voltei a vê-lo, na mesma cidade. Eu tinha voltado da Nigéria e da Costa do Marfim e sentia-me desolado: “Aquilo parece não ter futuro, professor”, eu disse. E ele: “E não tem. Por isso mesmo temos de inventar um”. Acho que não ouvi a frase “o Brasil salvará a África” de sua boca. Possivelmente eu a inventei a partir de várias coisas que li ou ouvi dele. A ideia amadureceu com o pensamento de que o Brasil tem a maior população negra fora do continente africano, importou mais escravos negros do que qualquer outro país das Américas e foi o último entre estes a abolir a escravidão: a dívida é demasiado pesada, nada menos do que uma redenção total pode estar à altura. Sou baiano, mulato, cresci em meio a uma maioria de negros. Gostei de “Mar Morto” quando ainda era menino, e até hoje o livro me toca como um longo poema romântico em prosa. Mas, já adulto e descobridor solitário de Clarice Lispector (eu tinha a impressão de que ninguém mais lia a revista “Senhor”, que Naum Sirotski, Bea Feitler e Paulo Francis eram anjos e que Clarice, Rosa e João Cabral me tinham sido revelados, em segredo, por eles, através do meu angelical irmão Rodrigo, numa tarde de Santo Amaro), pesava-me mais a posição oficializada pelo partido comunista internacional da importância dos livros de Jorge do que sua força imediata.

Mesmo assim, li “A morte e a morte de Quincas Berro d’Água com prazer admirado — e amei “Tenda dos milagres”, com sua versão hiperbólica da democracia racial. A fala de Mia Couto, anos depois, à luz das lembranças de Agostinho, pôs a força dos escritos de Jorge acima da reputação de realismo socialista com cores tropicais. Quando topei escrever “Verdade tropical”, João Ubaldo me aconselhou a falar com um agente literário americano que lhe tinha sido apresentado por Jorge. Esse agente é algo difícil de ser imaginado por um brasileiro: um comunista americano. Ele amava a literatura de Jorge enquanto este era comunista — e deplorava que Amado tivesse renegado “Subterrâneos da liberdade” e “A Albânia é uma festa”. Não acho nenhuma graça em Zizek ter um retrato de Stálin na sala. Mas uma vez ouvi, com fascinado encanto, Lina Bardi, já aos 80, dizer que gostava de Stálin e o defenderia de quem quisesse desqualificar a ideia comunista por causa dele. Nos 100 anos de seu nascimento, com a multitudinária galeria de personagens de “Gabriela” de novo nas telas das TVs do Brasil, vejo em Jorge a concretização de algo muito acima de defesas de Stálin (ou de ACM), com ou sem charme, ou mesmo de uma ultrapassagem de tal defesa. Vejo a concretização do incrível: o Brasil efetivamente agindo, através da Bahia mítica de um profeta feliz, na salvação do Continente Negro.
 
http://sergyovitro.blogspot.com.br/search?q=caetano+veloso&max-results=20&by-date=true
 

O homem que escreveu um país


Obra do escritor, ainda hoje, contribui para interpretar o Brasil

O autor, fotografado pela mulher Zélia Gattai, trabalha na casa do Rio Vermelho, em Salvador, na Bahia, onde morava com a família
Foto: Zélia Gattai / Divulgação Casa de Jorge Amado

O autor, fotografado pela mulher Zélia Gattai, trabalha na casa do Rio Vermelho, em Salvador, na Bahia, onde morava com a famíliaZélia Gattai / Divulgação Casa de Jorge Amado


RIO - No prefácio do livro “Mar Morto” (1936), Jorge Amado escreveu: “Agora eu quero contar as histórias da beira do cais da Bahia. Os velhos marinheiros que remendam velas, os mestres de saveiros, os pretos tatuados (...). O povo de Iemanjá tem muito que contar”. Ele, que queria apenas relatar os causos de uma região do Nordeste brasileiro, acabou por retratar e construir a identidade de um país povoado por negras fogosas, brancas pudicas e elitistas, políticos, trabalhadores, meninos de rua, pescadores, bêbados, terreiros e mães de santo. As histórias de Amado, que foram escritas num ritmo quase ininterrupto entre os anos de 1931 e 1997, ajudaram a disseminar a cultura brasileira pelo mundo, impulsionaram a produção literária nos países africanos de língua portuguesa e, ainda hoje, contribuem para um entendimento mais amplo do que é ser brasileiro.

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Ao traçar as cores e cheiros do Brasil, Amado delineou os aspectos de um povo mestiço, religioso, que sobrevivia em meio à miséria e contrastava com as figuras idealizadas por José de Alencar e Gonçalves de Magalhães na prosa romântica do século XIX. O “jeitinho” e as manhas expressos nas letras de Amado podem ser interpretadas, segundo o crítico literário e colunista do GLOBO José Castello, como mitos de fundação do Brasil popular.
— Podemos ler as obra dele como mitos de fundação de um Brasil popular. Jorge faz parte de um grupo precioso de poucos e grandes homens, como Paulo Prado e Gilberto Freyre, que ajudaram a moldar a ideia moderna que temos do Brasil. Essa visão pode parecer um pouco datada porque o país mudou muito, principalmente nestes dez últimos anos, mas isso não exclui a grandeza e a riqueza dos tipos e imagens que ele criou — explica Castello.
O escritor e também colunista do GLOBO João Ubaldo Ribeiro, amigo e conterrâneo de Amado, concorda com o crítico. “Jorge Amado não escreveu livros, ele escreveu um país. Amado expandiu nossos horizontes, criou e formou leitores e aproximou-nos de nós mesmos” afirmou Ubaldo em uma conferência sobre a obra amadiana realizada há poucos dias na Academia Brasileira de Letras (ABL), da qual Amado foi integrante de 1961 até a sua morte, em 1998.
Diferentemente de Ubaldo, Ana Maria Machado, presidente da ABL e autora de “Romântico, sedutor e anarquista — Como e por que ler Jorge Amado” (Objetiva) evita classificá-lo como descobridor ou inventor do Brasil. Ela prefere dizer — como Jorge afirmou em muitas entrevistas — que ele foi um grande contador de histórias.
— Ele levantou problemas sociais, criou discussões, mas não acho que ele tinha um projeto de criar um Brasil, o que importa são as obras dele, e o resultado está aí: um universo muito rico de histórias — diz Ana Maria, que destaca “Mar Morto” (1936) e “Jubiabá” (1935) como os melhores textos da primeira fase do autor, marcada por narrativas políticas.
Em 1954, Amado deixou de lado o discurso panfletário que permeou seus primeiros livros e aprofundou os temas da realidade do cotidiano brasileiro em sua literatura. A nova fase do escritor trouxe um país mais sensual em livros como “Gabriela, cravo e canela” (1958), mais despudorado em “Teresa Batista cansada de guerra” (1972) e, principalmente, mais místico.
O sincretismo religioso presente nos terreiros e nas ruas da Bahia se torna ainda mais representativo a partir de 1964, com a publicação de “Pastores da Noite” e “Tenda dos milagres” (1969). O doutor em Letras e professor da ECO-UFRJ Muniz Sodré observa que, ao incluir elementos religiosos em sua narrativa, Jorge complementa o imaginário a vida dos personagens baianos e afirma sua obra como espelho da vida da cidade.
— Considero o Jorge um explicador do Brasil. Ele parecia se perguntar o tempo todo: “Quem é o povo brasileiro?” O império português nos deu a nação, mas não deu o povo, que é o grande enigma nacional. Amado punha a liturgia da fé no centro da linguagem romanesca — explica Sodré.
Incluir elementos de luta política e do candomblé fez com que a literatura de Amado fosse lida com grande interesse nos países africanos de língua portuguesa, como explica o premiado escritor moçambicano Mia Couto.
— Ele falava de um Brasil que continha uma África dentro. É fácil identificar as cores e os cheiros da África nas páginas, nos personagens negros, mulatos. Ele foi fundamental para nos darmos conta de nós mesmos e observarmos as nossas danças, nosso erotismo, o nosso modo de comer e beber.


Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/o-homem-que-escreveu-um-pais-5617139#ixzz223HgyBKG

Ora, acho que vou-me embora - Gal Costa

Afinal... - Alaíde Costa

A Charge de Chico Caruso




http://oglobo.globo.com/pais/noblat/

'Gabriela' por Carybé

Nascido em Lanús, província de Buenos Aires, Hector Julio Paride Bernabó (1911-1997) se mudou para o Brasil no fim dos anos 1910. Adotou o nome artístico no Rio, inspirado no peixe Carybé. Destacou-se como pintor, escultor, gravurista, chegando também a atuar como diretor de arte (no filme 'O cangaceiro', de 1953) e pandeirista, ao lado de Carmen Miranda. Nos anos 1930, foi para a Bahia, onde a amizade com Jorge Amado floresceu, rendendo intensa parceria artística, como as ilustrações para os livros 'O sumiço da santa' e 'O gato malhado e a andorinha Sinhá'. Neste ensaio de 1975 estão seus desenhos com os tipos físicos sugeridos para a novela 'Gabriela' (exibida no mesmo ano na TV Globo) acompanhados por deliciosas descrições.


Explorar tema de lavadeiras; trouxas enormes com as quais podem-se cortar cenas; bacias e panelas.


Durante a filmagem usar como fundo ou rápidos primeiros planos os jogos infantis. Meninos passando por cenas dramáticas ou românticas de surpresa completamente alheios à ação.

Para enriquecer cenas. Jegue carregando pasto. Praticamente o jegue não se vê, é um monte de capim [...].

Cegos e cantadores anunciando momentos trágicos, como o assassinato de Sinhazinha e Osmundo pelo coronel Jesuino. Cantando mortes e tocaias. Apenas a toada de uma décima de abecedário para por em ambiente. Também os fatos alegres poderiam ser comentados.


Roceiro com picapau

Tipo físico e gestos de Gabriela. Os vestidos de pano muito fino que a qualquer movimento desenham o corpo. Nada embaixo e com certa transparência. Lavando cabelo.

Acompanhando bons pensamentos do Nassib; zoom e cortes.

http://oglobo.globo.com/infograficos/gabriela-ilustracoes-carybe/#imagem6

O Amado e sua amada



Na minha meninice, Jorge Amado e Zelia foram os meus Sartre e Simone de Beauvoir

Jorge Amado por Niemeyer



Jorge Amado por Niemeyer, 2001

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Isso


A última vez deve tirar sangue.
Unhas riscando
a palma.
Da mão. Da boca. Da alma.
O coração, acostumado ao seu vazio, espantou-se de ter visita. Hóspede? Inquilino? Dono? O coração não sabia. Sabia, apenas, que ele chegou devagar, analisando o espaço, espreitando as esquinas, mapeando os caminhos e veredas. Sabia, somente, que ele foi fincando bandeiras, deixando marcas em cada canto, tornando seu o que já nem lembrava de haver outro.
O coração se assustou. Descobriu, num rompante, que o peito era pequeno. Escutou sua própria angústia de desconhecer os amanhãs feito batucada. Tum-tum e acelerando. Até que. Não era nada. Não era festa, não era dia.
É aquela dorzinha fina de viver, a certeza da incompletude, a percepção dos limites, o desconforto comigo mesma, com o mundo. É aquela preocupação que nunca deixa desfranzir completamente a testa. É aquela compreensão de que não foi a melhor palavra, não foi o melhor momento, não foi. É aquela sensação de ter perdido alguma coisa, talvez o bonde, talvez eu mesma. Olhei pro lado errado do futuro e pensei que era um encontro. Era um abismo.
Estou cansada. Muito cansada. Cansada de tentar. De me esforçar. De não conseguir. Cansada de ser insuficiente. Cansada de não ser o bastante. Cansada de só me permitir ser feliz. Chegou o sofrer. A dor. Sou a dos olhos vermelhos. A do sorriso triste. A que não tem caminhos. Escrevo, letra a letra, para não esquecer: não sirvo, não presto, não consigo.
Eu, na palma da sua mão. Estava tudo certo, combinado: você ia partir meu coração. Nem marcamos encontro, nem decidimos hora, era o que podia ser: eu, você e a dor que viria. Nenhum lugar é nosso, você dizia e eu afiava a faca que você usaria pra me sangrar. Desde a primeira vez ficou acertado: nada. Nada não é nunca, eu brincava de roleta-russa e lhe pedia corpo e desejo. Eu só queria: tanto. Existem coisas que não podem ser ditas e coisas que não devem ser ditas, escrevo sempre o que não pode ser dito, deixo os deveres com você. Não pode ser dito o desejo correndo morno na pele, tudo se ruborizando e umedecendo. Como dizer um olhar feito sim e mais e agora?
Em lento preparo pra dor, eu deixei o querer se fazer presença. Me ocupe, era um soluço, um gemido, você todo em mim, eu sei, eu espero, eu convido, eu aceito. Não acreditamos em finais felizes, não acreditamos um no outro, não acreditamos em futuros, não acreditamos em nenhum deus que não soubesse dançar e nem nos deuses astronautas, não acreditamos em redenção, não acreditamos em nada e nos agarramos, náufragos, no corpo do outro, impossível âncora. Fui me preparando pra morrer, morrer em você, aquele prazer feito soluço, eu sabia que lhe escolher era me abandonar, eu sabia, eu queria, eu sabia. Eu me fazia em confissões e estremecimentos, colecionava relógios esperando a hora certa de ser sua e não ser mais nada. Você ia partir meu coração, não ia? Não me disse nada sobre arrancá-lo do peito, esvaziá-lo dos sonhos e perdê-lo entre serras, disse?
Mas eu ainda sei contar estrelas. Ainda sei fazer pintura a dedo com o sangue que verto. Ainda sei cantar baixinho. Ainda sei fazer panqueca. Ainda sei deixar o olhar se perder no mar como se fosse, ele todo, lágrima. Ainda sei pensar: amanhã, amanhã, amanhã e fazer de conta que sou Scarlett. Mas não sou.

http://borboletasnosolhos.blogspot.com.br

Isso - Chico César



Isso
Chico César


Isso que não ouso dizer o nome
Isso que dói quando você some
Isso que brilha quando você chega
Isso que não sossega, que me desprega de mim
Isso tem de ser assim...

Isso que carrego pelas ruas
Isso que me faz contar as luas
Isso que ofusca o sol
Isso que é você e sou sem fim
Isso tem de ser assim...

Poliamor

Por Vanessa Rodrigues*
Sexta-feira, 27 julho, 2012



(permitido até a menores de 18)
Sou todo um harém matriarcal. Poliândrica, poligâmica, heterossexual, homossexual. Poliamor, portanto, para simplificar. Sou uma democracia lato sensu neste tipo de relação. Porém, devo exercitar o mea culpa no seguinte: sou pouco tolerante com a superficialidade. É que relação, qualquer seja, tem que ter, na matemática do mínimo denominador comum, um bom papo, risada, observação participante e até um q.b. de discordância para agregar alguma coisa no outro. Seria um saco ficar concordando o tempo todo: sim, meu amor; desliga-você-não-você-você!
Logo, para mim, isto é termômetro de irascibilidade: frases-cliché, vaidades vãs, indiferenças. Me dá uma certa urticária. Na hora de responder, viro uma fofa-blasé. E ser fofa-blasé é um problema, porque há algo em nós que delata que, para não sermos totalmente desagradáveis, estamos meio que pisando palco com cadafalso. E se a vida é um grande palanque, sabemos, então nossa máscara é molde personalizado para essa-ou-aquela pessoa, que mais cedo ou mais tarde, há de desgastar.
Às vezes, me engano e uso a máscara transparente (deve ser da idade, porque depois do retorno de Saturno, dizem, viramos máquina da verdade, piii, dando xô em frete, exercitando frontalidade): dá para ver que minha voz com sorriso está com cara de quem tomou vinagre; que meu olho não pára de piscar tentando tirar cisco, quando tento ser agradável contrafeita; e que minha ansiedade disfarçada tem a mão tremente, tentando dar um jeito de sair correndo. Fico igual a bicho tentando falar, se o houver! É uma coisa esquisita! Fast-forward, então: meu filme é outro!
Há uns tempos tive que me assumir: sou poliândrica; e outras vezes, poligâmica. É, com orgulho e sem queixume
Feito o desabafo de divã de psicanalista, posso fazer associação livre daqui em diante. E a culpa é sempre ou dos gregos, ou dos latinos. Quem manda plantar a raiz da etimologia da Língua Portuguesa, para explicar nosso comportamento? Valha a verdade, então, para dar um gás nisto: há uns tempos tive que me assumir: sou poliândrica; e outras vezes, poligâmica. É, com orgulho e sem queixume. Dá até uma certa inveja, né?
Está dito: Πολυς (polys) = vários + Γαμος (gamos)= mulher; ou andros= homem.
Mas antes que venha a brigada de censura, explico: falo de LIVROS. Sim. Não consigo ler apenas um, ir até ao fim, sem me envolver com outro. O negócio (negar o ócio, claro) é o seguinte: tem sempre aquele livro de reserva na mesa-de-cabeceira para ler à noite; aquele, mais leve, para andar passeando nos transportes públicos e outro para a Santa Porcelana. Uma tríade, portanto. E dito assim, isto bem que poderia até dar uma Irmandade blockbuster: a Trilogia da Literatura Portátil, sem profanar a santa leitura. (Pensando bem, nem por isso!)
Se há lugares que nos inspiram para criar, deve ser legítimo ter lugares certos para determinados livros, ou pelo peso e densidade, certo hermetismo; ou até mesmo, por amor à capa delicada que não queremos por aí, maculada.

E não, eu não me confundo. Não há história que se cruze, a não ser depois, em meu entendimento, tentando encontrar um sofá confortável na sala-de-visitas de meu cérebro. Elas existem por si, nesse poliamor. Quer seja homem, mulher, ambos. Sou democrática (liberou geral); não tem essa de circuito privado. Se a fibra da prosa for para enrijecer o músculo da Língua, está tudo certo. Vou pegando daqui e dali, ao ritmo de meu cotidiano. Assim satisfazendo necessidades complementares (aquele é mais político, aquele mais cerebral, aquele mais histórico; aquele mais metaliterário): um autor recente, um autor clássico, e um técnico, que Jornalismo tem esta demanda diária para ficar antenado com as Terceiras Vagas da Vida, e descobrir que o meio, enfim, pode já não ser a mensagem, qual pele da cultura.
Sou, então, poliamor literário, com certo brilho no olho e batendo no peito com pundonor, vestindo a camiseta, venha quem vier me chamando de promíscua. Folhear as páginas com fulgor é minha convicção, enquanto pego várias caronas. Pode até parecer uma overdose de relacionamento (e eles entendem, não tem que usar máscara), mas, (e agora schhh, falem baixinho!!!) posso bem ter encontrado o elixir de longevidade (qual colagênio). É que pesquisa publicada em 2008 pela conceituada revista New Scientist atestava o seguinte: culturas poligâmicas vivem mais do que culturas monogâmicas. Enquanto essa é a verdade, provada cientificamente, ainda que daqui a alguns anos, séculos, minutos, venha a ser provado o contrário, posso atestar que vivi um pouco mais, pelo menos, através dos livros.


*Vanessa Rodrigues é jornalista independente. Nasceu em 1981, em Portugal. Viveu cinco anos em São Paulo, como correspondente da rádio portuguesa TSF e jornal Diário de Notícias, para quem cobriu a FLIP desde 2006. Atualmente colabora com a TSF, Revista (jornal Expresso) e Notícias Magazine.

Poema da Noite


Afirmam que a vida é breve - António Botto



Afirmam que a vida é breve,
Engano, -- a vida é comprida:
Cabe nela amor eterno
E ainda sobeja vida.



António Tomás Botto (Casal de Concavada, Abrantes, Portugal, 17 de agosto de 1897 - Rio de Janeiro, 16 de março de 1959) - Poeta e contista português, causou polêmica nos meios religiosos conservadores em Portugal quando publicou o livro Canções. Também foi amigo de Fernando Pessoa. Mudou para São Paulo e depois para o Rio de Janeiro, onde morreu atropelado.


http://oglobo.globo.com/pais/noblat/

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Sara Gazarek delivers the message




Booking Jazz: A Subjective Guide

  Booking Jazz: A Subjective Guide
By
BRUCE KLAUBER,
Published: July 21, 2012
According to a study called the Jazz Audiences Initiative, one-third of all Americans--over 100 million people--report that they like jazz.
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There is no rule book, reference work or formal set of regulations that club and restaurant owners can consult about how to book and present jazz.
There was a quasi-model of sorts in the 1930s, 1940s and 1950s, given the proliferation of cafés, boites, bistros, bars, ballrooms, and all types of nightspots that used live jazz, whether local or national. Whatever the template was back then, if there even was one, it no longer applies.
However, a rather singular era in jazz history, which lasted roughly from 1955 to 1965, is worth looking at today. Jazz—all kinds of jazz—was actually popular in those days. Thelonious Monk, Duke Ellington and Louis Armstrong made the cover of Time Magazine; jazz was regularly presented on national television and local radio; and artists like Dave Brubeck, Stan Getz, Herbie Mann, Cal Tjader, Ramsey Lewis, Eddie Harris, George Shearing, Count Basie with Joe Williams, and Maynard Ferguson were selling lots of records, many to those who may not have liked jazz before or since.
Bars and restaurants in big cities wanted to capitalize on what may or may not have been a fad. Rules for booking groups? Owners made them up as they went along, but from the outset, they did realize five things: A piano was needed, a "p.a. system," as it was called then, was needed; an appropriate space had to be set aside or a stage had to be built to present the music; talent had to be booked, and advertising had to be purchased.
As a youngster, I remember such a place in Philadelphia's Overbrook Park section. A restaurant/bar called, of all things, The Picasso, had been open for years before the owners decided to jump on the jazz bandwagon in the late 1950s. The proprietors did the obvious, outlined above: bought or rented a piano and sound gear, built a little stage, booked area talent like pianist Bernard Peiffer and his trio, and advertised same. The Picasso, like hundreds of other places like it throughout the country, did quite well.
These joints, if nothing else, became "the" places to go. Hey, it was the hip thing to do. But with the arrival of The Beatles, the very nature of the entertainment business changed. Some, like the venerable Metropole Café in New York city, hung on by making some concessions to rock that were, in retrospect, misguided. They booked go-go dancers to perform opposite mainstream jazz attractions like Gene Krupa. "I saw the progression from none, to a little, to a lot," Gene once said.
Indications are that we've come full circle. It would be a cliché and inaccurate to say "jazz is back," but the numbers say that it is. According to a study called the Jazz Audiences Initiative, one-third of all Americans—over 100 million people—report that they "like jazz," and an astounding 20 million people attended a jazz event last year, up from 9.6 million in 1982. That's growth. And that's a lot of tables and bar stools that could be filled in clubs, coffeehouses and restaurants by booking jazz.

continue reading on : http://www.allaboutjazz.com/php/article.php?id=42510

terça-feira, 24 de julho de 2012

CARTA DE DORIVAL CAYMMI PARA JORGE AMADO




 " Jorge meu irmão São onze e trinta da manhã e terminei de compor uma linda canção para Yemanjá pois o reflexo do sol desenha seu manto em nosso mar, aqui na Pedra da Sereia. Quantas canções compus para Janaína, nem eu mesmo sei, é minha mãe, dela nasci. Talvez Stela saiba, ela sabe tudo, que mulher, duas iguais não existem, que foi que eu fiz de bom para merecê-la? Ela te manda um beijo, outro para Zélia e eu morro de saudade de vocês. Quando vierem, me tragam um pano africano para eu fazer uma túnica e ficar irresistível.
Ontem saí com Carybé, fomos buscar Camafeu na Rampa do Mercado,andamos por aí trocando pernas, sentindo os cheiros, tantos, um perfume de vida ao sol, vendo as cores, só de azuis contamos mais de
quinze e havia um ocre na parede de uma casa, nem te digo. Então ao voltar, pintei um quadro, tão bonito, irmão, de causar inveja a Graciano. De inveja, Carybé quase morreu e Jenner, imagine!, se fartou
de elogiar, te juro. Um quadro simples: uma baiana, o tabuleiro com abarás e acarajés e gente em volta. Se eu tivesse tempo, ia ser pintor, ganhava uma fortuna. O que me falta é tempo para pintar,compor vou compondo devagar e sempre, tu sabes como é, música com pressa é aquela droga que tem às pampas sobrando por aí. O tempo que tenho mal chega para viver: visitar Dona Menininha, saudar Xangô, conversar com Mirabeau, me aconselhar com Celestino sobre como investir o dinheiro que não tenho e nunca terei, graças a Deus, ouvir Carybé mentir, andar nas ruas, olhar o mar, não fazer nada e tantas outras obrigações que me ocupam o dia inteiro. Cadê tempo pra pintar?
Quero te dizer uma coisa que já te disse uma vez, há mais de vinte anos quando te deu de viver na Europa e nunca mais voltavas: a Bahia está viva, ainda lá, cada dia mais bonita, o firmamento azul, esse mar tão verde e o povaréu. Por falar nisso, Stela de Oxóssi é a nova iyalorixá do Axé e, na festa da consagração, ikedes e iaôs, todos na roça perguntavam onde anda Obá Arolu que não veio ver sua irmã subir ao trono de rainha? Pois ontem, às quatro da tarde, um pouco mais ou menos, saí com Carybé e Camafeu a te procurar e não te encontrando, indagamos: que faz ele que não está aqui se aqui é seu lugar? A lua de Londres, já dizia um poeta lusitano que li numa antologia de meu tempo de menino, é merencória. A daqui é aquela lua. Por que foi ele para a Inglaterra? Não é inglês, nem nada, que faz em Londres? Um bom filho-da-puta é o que ele é, nosso irmãozinho.
Sabes que vendi a casa da Pedra da Sereia? Pois vendi. Fizeram um edifício medonho bem em cima dela e anunciaram nos jornais: venha ser vizinho de Dorival Caymmi . Então fiquei retado e vendi a casa, comprei
um apartamento na Pituba, vou ser vizinho de James e de João Ubaldo, daquelas duas ‘línguas viperinas, veja que irresponsabilidade a minha.
Mas hoje, antes de me mudar, fiz essa canção para Yemanjá que fala em peixe e em vento, em saveiro e no mestre do saveiro, no mar da Bahia.
Nunca soube falar de outras coisas. Dessas e de mulher: Dora, Marina,Adalgisa, Anália, Rosa morena, como vais morena Rosa, quantas outras e todas, como sabes, são a minha Stela com quem um dia me casei te
tendo de padrinho. A bênção, meu padrinho, Oxóssi te proteja nessas inglaterras, um beijo para Zélia, não esqueçam de trazer meu pano africano, volte logo, tua casa é aqui e eu sou teu irmão Caymmi”.


ODOIÁ



domingo, 22 de julho de 2012

Dois - Tiê

Ferreira Gullar e a poesia

Subversiva







A poesia


Quando chega


Não respeita nada.






Nem pai nem mãe.


Quando ela chega


De qualquer de seus abismos






Desconhece o Estado e a Sociedade Civil


Infringe o Código de Águas


Relincha






Como puta


Nova


Em frente ao Palácio da Alvorada.






E só depois


Reconsidera: beija


Nos olhos os que ganham mal


Embala no colo


Os que têm sede de felicidade


E de justiça.






E promete incendiar o país.






( Ferreira Gullar )

"Em poucas palavras" - Fausto - do disco "O Despertar dos Alquimistas" (LP 1985)

A Cidade da Boemia

domingo, 22 de julho de 2012

Poesia em tempos de boemia literária


Um texto precioso escrito por FLORISVALDO MATTOS


ASSUNTO: Resumo de conferência pronunciada por Florisvaldo Mattos, durante o seminário “Memórias Cruzadas da Cidade do Salvador”, promovido pela Fundação Pedro Calmon, sendo moderador seu presidente, o historiador Ubiratan Castro, em 18 de julho de 2012, no auditório da Biblioteca Pública do Estado da Bahia, nos Barris, na parte circunscrita ao tema A Cidade da Boemia, tendo como foco “a boemia literária e o entrelaçamento da vida intelectual, mundana e universitária, que incubaram intensamente gerações de intelectuais transformadores e movimentos de vanguarda, na Salvador dos anos 50”.
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Houve um tempo nesta Cidade do Salvador em que, mais que uma forma de convívio entre amigos, as tertúlias eram um refúgio de que se valia a boemia literária, para fruir o intercâmbio cordial de ideias, que muitas vezes, desaguava em desafio, em torneios de emulação, quando não de contenda rude, açulando a curiosidade de uma audiência, que as acompanhava avidamente, de perto ou à distância. E nelas muito de criação literária e artística se divulgava, para depois ganhar o mundo. Essa distração intelectual com o tempo se esvaneceu, perdeu a antiga feição de urbanidade, para quase completamente sumir das práticas culturais, passando a compor um vasto anedotário. Em 1958, já não se falava mais dessa espécie de concurso civilizado, mas ocorreu que, num bar da Rua da Ajuda, no curso de uma tertúlia boêmia, que reunia poetas, literatos e jornalistas, dois sonetos deixariam de ser remotos estados de ânimo e sutileza mental, para cumprir um trajeto que pertence a todos os que viajam pelo terreno dos símbolos.

A partir dos anos 1940, quando profundas alterações ocorrem na ordem social e econômica, com fortes reflexos na cultura, a Bahia, que era a terra do “já foi”, toma outra configuração demográfica e urbana, impulsionada pela descoberta do petróleo no Recôncavo e a conseqüente deflagração de um processo de industrialização modernizador, livrando-a da dependência do comércio agroexportador, que tinha seu vigor centrado no cacau; nova dinâmica advinda das transformações no sistema de transporte rodoviário e aeroviário torna mais rápida a relação entre o Sul rico e o Nordeste, aproximando centros de consumo e fornecimento de bens e mercadorias; por fim, ocorrem mudanças no panorama cultural, desde a gestão liberal de Anísio Teixeira na Secretaria da Educação e Cultura, no Governo Mangabeira (1947-1951), acentuadas pela revolução que o reitorado de Edgar Santos imprimirá na Universidade da Bahia, nos anos 1950, criando novas escolas de arte e institutos especializados, além de reformular unidades já existentes.

Tais sucessos vão se refletir diretamente no desenvolvimento da Cidade do Salvador, que, cansada e envergonhada do velho perfil provinciano, começa então a sonhar-se cosmopolita. Num primeiro momento, as letras e as artes entram em agitação, na ânsia de se libertar das amarras do conservadorismo imperante, com a presença de jovens artistas plásticos (Mário Cravo Júnior, Carlos Bastos, Carybé, Jenner Augusto), ficcionistas e poetas (Vasconcelos Maia, José Pedreira, Wilson Rocha, Jair Gramacho), espraiando-se para outros campos (arquitetura, mundanismo e até na política), com os ventos liberais que soprava a Constituição de 1946. O entrelaçamento entre a vida intelectual mundana e universitária faz surgir, com tinturas existencialistas, o primeiro pouso aconchegante da boemia literária na cidade, o Bar Anjo Azul, na Rua do Cabeça, que se tornaria doravante um emblema, um marco no gênero. Era a vibrante presença da Geração Caderno da Bahia, empenhada em fazer vingar o ideário estético do modernismo, cuja adoção plena o academicismo rotundo e insensível travara por dois decênios.

É nessa atmosfera de sonho e esperanças que desembarco em Salvador, em fevereiro de 1952, numa noite de Segunda-Feira Gorda de Carnaval, vindo de Itabuna, para estudar no paradigmático Colégio da Bahia e depois cursar universidade. E é a partir da Faculdade de Direito, já publicando poesia na revista Ângulos, que venho integrar o grupo nuclear de jovens, adiante dito Geração Mapa, que borbulhava entre o sucesso e o escândalo com as apresentações de seus espetáculos de poesia dramatizada no auditório do Colégio da Bahia, rotulados de Jogralescas, por volta de 1956/57. Glauber Rocha à frente, e já se insinuando líder, por lá transitava uma irrequieta malta de declamadores composta de poetas, artistas plásticos, teatrólogos, cineastas, atores e futuros jornalistas (Fernando da Rocha Peres, João Carlos Teixeira Gomes, Paulo Gil Soares, Calasans Neto, Sante Scaldaferri, Ângelo Roberto, Fernando Rocha, Carlos Anísio Melhor, Fred Souza Castro, Antônio Guerra Lima, Anecy Rocha, lembro alguns).

Associei-me ao grupo e me engajei na saga de seus projetos editoriais e artísticos, numa vasta gama de ações, envolvendo literatura, teatro, cinema, artes plásticas e jornalismo. E logo começariam a surgir, em caudal, livros com o selo das Edições Macunaíma; os projetos cinematográficos da Iemanjá Filmes; pinturas, esculturas e gravuras em galerias de arte; peças levadas no espaço da jovem Escola de Teatro; e, logo também, uma revista, a Mapa, e o inesquecível SDN, o suplemento literário dominical editado pelo Diário de Notícias, de Assis Chateaubriand, rematavam um vertiginoso leque de aspirações inovadoras. Aos nomes citados, vale lembrar outros aderentes, como eu, Myriam Fraga, João Ubaldo Ribeiro, Sônia Coutinho, David Salles, Valdeloir Rego.

Como então os tempos de franca liberdade se casavam com a vida boêmia, febris cogitações e intensos debates exigiam que a geografia da cordialidade se estendesse por diversos pontos de encontro, que se tornariam habituais. Eram os mais freqüentados: a Sorveteria Cubana, ainda hoje lá na parte alta do Elevador Lacerda; o Restaurante Cacique, na Praça Castro Alves, mas ainda à época chamada de Largo do Teatro; o Anjo Azul e o Restaurante Porto do Moreira, ambos na Rua do Cabeça, o Bar Brasil, o Chez Bernard, novidade que se instalara no terraço do Edifício Themis, na Praça da Sé; e, às vezes, o Colón, na Piedade. E, nos fins de noite, com tudo fechado, Zé do Esquife, um tabuleiro de iguarias várias, que se oferecia à boemia junto à estátua de Castro Alves.

A noite era realmente criança e aconselhava outros pousos e outros desempenhos, a começar pelas casas de mulherio, como o “Meia-três”, na Ladeira da Montanha, as casas de “China”, “Maria da Vovó” e “Cymara”; gafieiras (Churrascaria Ide, Metrô, Rumba Dancing, Belvedere); inaugurais boates (Carijó, XK Bar, Manhattan, Pigalle e, para os mais abonados, o Cassino Tabaris). Fora disso e das cantinas de faculdade, os encontros se davam nas sessões dominicais do Clube de Cinema da Bahia, capitaneadas pelo advogado trabalhista Walter da Silveira, salas de espera dos cinemas, portas de livraria e “hall” de faculdades. A cidade tranqüila era assim intensivamente vivida, dia e noite, varando as madrugadas.
Volto ao começo, à história dos dois sonetos nascidos de uma longínqua tertúlia literária, no lusco-fusco de um bar, em anos de boemia e jornalismo romântico. Narro a excentricidade. Noite de primavera, dias depois do surgimento do “Jornal da Bahia”, na Rua Virgílio Damásio, nº 3, uma transversal da Rua Chile, numa das mesas de tampo de mármore do Bar Nogueira, então um dos mais concorridos da Rua da Ajuda, vizinho ao famoso Café das Meninas, amigos estão sentados, dois deles poetas e dois tarimbados jornalistas. Os poetas éramos eu, um mero iniciante, na poesia como na imprensa, e Jair Gramacho, já um dos mais prestigiados membros da Geração Caderno da Bahia, na qual disputava fama com poeta Wilson Rocha, ambos ícones do modernismo na Bahia. Os dois jornalistas eram Ariovaldo Matos, romancista e autor de “Corta Braço”, ficção pioneira inspirada numa invasão de terras ocorrida no bairro da Liberdade, e o contista e cronista Flávio Costa, este subsecretário de Redação, aquele experiente Chefe de Reportagem do novo jornal.

Falava-se de literatura, como sempre, quando de repente, coisa de boêmios, surge um desafio, para saber-se qual dos dois poetas ali melhor escreveria um soneto. Não sei de quem partiu a idéia, tampouco o grau do efeito etílico, que, indulgente, o Ângelus da Igreja da Ajuda perto acalentava. Os dois poetas se entreolharam, mediram o tamanho do repto, mas, feito o ajuste, bebericaram um pouco mais e se foram. Dois dias após, tal como combinado, voltamos os quatro ao mesmo bar, cada um dos poetas, empunhando a sua Excalibur verbal: eu, com o soneto intitulado "A cabra", de cândida inspiração rural, composto no clássico formato petrarquiano, com os catorze versos dispostos em dois quartetos e dois tercetos; ele, Jair Gramacho, com suntuosa joia lavrada no modelo shakespereano, de três quartetos integrados e um dístico, amplo de alusões panteístas e referências mitológicas; ambos construídos em decassílabos de rimas entrelaçadas.

Cumprindo o ritual e com a devida entonação, cada autor leu o seu soneto. Na postura de juízes, depois de ouvi-los e cotejá-los, em silêncio, os dois jornalistas concluíram sorridentes que os dois poemas mereciam publicação na edição dominical do “Jornal da Bahia”. Dito e feito. Poucos dias depois, com verniz gráfico de prestígio, os sonetos ocupavam as duas colunas do lado direito da página literária, editada sob a batuta do historiador e cronista Luís Henrique Dias Tavares, mas sem se referir ao embate que se travara no bar. Publicado, cada soneto seria alvo de corporativista acolhida: o meu, com recitação e elogios da presunçosa grei a que eu pertencia, enquanto o de Jair era bem mais efusivamente louvado não apenas por nomes consagrados de sua geração.

Em 1960, os dois poemas sairiam ainda na revista Ângulos (Nº 16), então prestigiosa publicação do Centro Acadêmico Ruy Barbosa, da Faculdade de Direito, mas cada um doravante com sorte diversa. “A cabra” iria compor o conjunto do meu primeiro livro, Reverdor, saído em 1965 pelas Edições Macunaíma, enquanto o primoroso soneto de Jair Gramacho, ao que sei, permanece até hoje inédito em livro. São eles que agora abaixo reproduzo, vindo em primeiro lugar o do meu saudoso e insigne êmulo.


SONETO OITAVO DE ATALANTA EM CALIDÔNIA

JAIR GRAMACHO

Nesta tarde o terreiro está vazio.
Distante o laranjal se estende; a manga,
A serra, o azul depois; tênue miçanga
De açafrão tinge as fímbrias, o do estio
Único resto. Esta tristeza é mais
Que a da paisagem pobre e adormecente;
Talvez por não ter rosas, não ter gente,
E a solidão vagueie pelos currais.
Mas, certo é que nesta hora, ressurrecto,
O mito abandonado busca o luxo
Antigo de existir; dispõe espectros
Que em volta cirandeiam do repuxo...
Ah! Mais que basta para o instante magro
Galinhas ver – irmãs de Meleagro!

A CABRA

FLORISVALDO MATTOS


Talvez um lírio. Máquina de alvura
sonora ao sopro neutro dos olvidos.
Perco-te. Cabra que és já me tortura
guardar-te, olhos pascendo-me vencidos.

Máquina e jarro. Luar contraditório
sobre lajedo o casco azul polindo,
dominas suave clima em promontório;
cabra: o capim ao sonho preferindo.

Sulca-me perdurando nos ouvidos,
laborado em marfim – luz e presença
de reinos pastoris antes servidos –

teu pelo residência da ternura
onde fulguras na manhã suspensa:
flor animal, sonora arquitetura.


Florisvaldo Mattos é poeta e jornalista; membro da Academia de Letras da Bahia; autor de livros de poesia e ensaios.


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A SORTE DE SER FEIO

 


As pessoas me chamam de feio, na verdade é uma promoção. Antes me chamavam de ET, agora tomei a forma humana. E ainda perguntam como estou casado com uma mulher linda. Simples, mulheres lindas têm mau gosto e feios têm bom gosto.

Ser feio tem inúmeras vantagens e benefícios, pode perguntar ao Woody Allen:

- O feio é inesquecível, você olha uma vez e o choque é tão grande que guarda para sempre.

- Amor à primeira vista é para os bonitos. Para os feios, é amor ao primeiro trauma.

- Mais fácil se apaixonar pelo feio. Você não entende como ele nasceu assim, pede um prazo maior. O feio é um enigma, uma charada. Mulher abandona o homem quando entende rápido.

- O feio não é preguiçoso no relacionamento, não vai perder tempo ajeitando o cabelo e se olhando no espelho.

- O feio traz as melhores conversas. Ele depende da lábia para garantir a distração da mulher.

- O feio não envelhece, só melhora com o tempo. Diferente do bonito, que ficará um dia feio.

- Não, o feio não melhora com o tempo, você é que se acostumou com ele. Um feio conhecido torna-se simpático. Um feio desconhecido é apenas feio.

- Todo feio é engraçado, aprendeu a rir de si mesmo. Não conheço feio mal-humorado.

- O feio é educado, pois sofreu muito com a falta de educação dos outros,

- O feio não reclama, está sempre satisfeito. Quem reclama é o bonito, insaciável com os elogios.

- O feio gosta muito de seu nome, foi obrigado a suportar tudo o que é apelido,

- O feio é uma apoteose na cama, Sapucaí dos lençóis. A excitação feminina cresce com o medo.

- A mulher nunca se entedia com o feio, leva susto cada manhã.

- O feio é prático, já se acorda pronto, não precisa se arrumar.

- O feio apresenta uma maior resistência emocional, é capaz de ser um grande parceiro nas crises e usar a criatividade nos piores momentos.

- Ninguém duvida da masculinidade do homem feio. Já o homem bonito demais parece uma mulher.

Ouça meu comentário da manhã de sexta (20/7) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Daniel Scola: