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quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

crônica

POR EM 23/02/2012 ÀS 09:52 PM

Amou daquela vez como se fosse a última

publicado em
Combinaram assim: falar-se-iam diariamente, por volta das seis da tarde, a fim de conferir (ele, o filho), checar, assegurar que ele estivesse vivo e passando bem (ele, o pai). Fizeram o acordo sem disfarçarem o profundo embaraço, com os olhos liquefeitos em lágrimas e o coração pelejando em ritmo desembestado.
Abraçaram-se besta e dramaticamente, como se fosse pela última vez. O pai concedeu a benção ao filho e tocou para a chácara onde residia, nos arredores da cidade. “Esta gleba aqui a Prefeitura não vai lotear nem a pau!”, gaba-se, redondamente enganado a respeito do apetite avassalador da especulação imobiliária que domina as metrópoles e os seus dirigentes.
Há cinco anos, o velho enviuvara. No começo, o choque da separação compulsória remeteu-o a pensamentos destrutivos, anti-crísticos, conforme ele mesmo dizia numa linguagem empolada. De tal forma que não firmou o propósito de se autoaniquilar. Perdeu a mulher, alguns quilos, mas não perdeu a fé.
Homem vivido e experimentado nas ene tragédias desta e de outras vidas (ele cria piamente em antibióticos e reencarnações), sabia que o tempo cicatrizava quase todo tipo de ferida. Então esperou. Enquanto isso, mergulhava nos livros, devorava-os como se fossem os comprimidos de vitaminas e de rivotril. O que era pior naquela idade: osteoporose, insônia ou uma saúde de ferro?
Apesar de acorrentado à oitava década de vida, gozava de razoável saúde. Animava-se com a suposição que, ao tomar um cálice de vinho tinto ao dia, estaria protegendo as veias e as artérias da ação maléfica do tempo, do colesterol, do estresse e das tristezas acumuladas. Então secava uma taça de vinho chileno antes do almoço, religiosamente. Se Jesus transformara água em vinho é porque havia mesmo certo poder medicinal naquele líquido inebriante. Um santo remédio, não restava dúvida: além de desentupir as veias, entorpecia o dia.
Ultimamente, por causa das incursões nos temas esotéricos, andava melancólico, flutuando entre as aflições do presente e as lembranças da mocidade. Não podia mais negar: tinha medo da morte, sim. Afinal, ali estava ela, pisando em seus calcanhares, implacável, bafejando um hálito indesejável na sua nuca.
Tinha uma saudade doída da mulher, uma dor que até parecia palpável nalgum lugar do abdômen. Vivos restavam poucos companheiros. Quase todos com a saúde no guimba, em “péssimo estado de conservação”, como ele mesmo costumava brincar.
No íntimo, torcia muito para morrer subitamente. Se pudesse escolher, preferia morrer dormindo, sem asfixia, é claro. Morrer rapidinho, como se fora uma manga podre caindo do pé. Uma bala perdida cravada no peito não seria de todo ruim. E havia tantas delas, ultimamente. Precisava se encontrar.
Todas as doutrinas lidas, relidas e esmiuçadas no decorrer de tantos anos, miseravelmente, não lhe davam suficiente guarida para suportar o epílogo. Temia a morte, como temia uma cólica de rins. Como seria possível a um ser humano produzir pedras dentro do próprio corpo? Eram dúvidas concretas de se amolecer qualquer sujeito.
Uma vez que morava sozinho no casebre, a possibilidade iminente de ser encontrado sem vida, já em avançado estado de decomposição, vinha arruinando as suas noites de sono desde que a mulher desencarnara (ele jamais desencanava destes dilemas da carne e da alma). Procurou então o filho único para externar o pavor, para dividir o drama e selarem um pacto que pusesse fim àquela agonia.
Que se falassem todos os dias, às seis. Que o rapaz tivesse paciência com ele e procurasse compreender a sua situação (afinal, um dia ficaria velho também e coisa e tal). Que verificasse pessoalmente estaria ele vivo ou não (ele, o pai). Nem precisava gastar tempo ou gasolina. Bastava discar o telefone. Requisitou a máxima atenção do filho. Olhou no miolo dos seus olhos, como se quisesse entrar dentro deles: “Estamos combinados?!”, implorou, e o seu estado era mesmo de fazer dó.
Ainda que desejasse chorar, o moço sorriu. Embora se sentisse meio arrasado com a fraqueza do pai (e dele próprio), buscou consolar. “Você viu? O Governo concedeu um abono aos aposentados...”, comentou qualquer assunto, tentando desfazer o rumo da prosa, esforçando-se para dizer algo agradável que os resgatasse daquele nevoeiro de sentimentos.
O rapaz tentou fazer graça da situação, mas o pai não riu. Na verdade, ele percebeu que as proeminentes rugas na fronte do velhote pulavam freneticamente, como se fossem um frango com o pescoço quebrado saltitando no terreiro, suplicando por um “sim”.
Sim. Tudo bem. Garantiu ao velho pai que telefonaria todos os dias, às seis. “Pode ligar a cobrar...”, recomendou o ancião, utilizando um atrativo dos mais mixurucas, uma recompensa bisonha, como se oferecesse uma guloseima a uma criancinha. Parecia mesmo uma criatura pra lá de descontrolada.
O velhote recostou na poltrona e expirou demoradamente, retirando o peso do mundo das suas costas. Relaxou, enfim. Nutria uma admiração profunda e verdadeira pelo filho. Teve vontade de confessar que o amava, mas este era um daqueles verbos complicados que não conseguia conjugar nem fodendo.
Conforme o pacto, falaram-se diariamente durante algumas semanas. Até que um dia, o telefone tocou, e nem ao menos eram seis da tarde. Do outro lado da linha, uma moça de voz delicada quis saber se ele era o senhor fulano de tal, pai do beltrano de tal, que tinha embarcado no voo de ontem à noite para Pasárgada. Ela e a empresa aérea lamentavam profundamente (“Por favor, o senhor procure ficar tranquilo...”), mas havia fortíssimos indícios que a aeronave desaparecera nalgum ponto indeterminado sobre o Oceano Pacífico. As buscas já haviam começado. Ele buscou, mas não encontrou o chão.

Obs: o título desta crônica é um verso do poema “Construção”, de Chico Buarque de Hollanda.

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