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quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

“Fenômeno Woody Allen”

POR EM 23/02/2012 ÀS 06:03 PM

Outro Oscar para Woody Allen?

publicado em
O escritor e filósofo Flávio Paranhos afirma que Woody Allen é o maior artista que já existiu e que, filosoficamente, é superior a Dostoiévski


No distante ano de 1978, Woody Allen, mesmo sem comparecer a cerimônia, conseguiu a proeza de impedir a Academia de Hollywood de fazer a desfaçatez de premiar o farsante George Lucas com os Oscar de Melhor Filme, Roteiro e Direção. De quebra garantiu para a melhor de suas musas, Diane Keaton, o prêmio de Melhor Atriz. Seu “Annie Hall” foi o grande vencedor da noite. Também foi feliz em 1987, quando “Hannah e Suas Irmãs” levou as estatuetas de Melhor Ator Coadjuvante para Michael Caine, Melhor Atriz Coadjuvante para Dianne Wiest e Melhor Roteiro Original para o próprio Allen. Depois desses anos gloriosos, volta e meia ele era lembrado, como em 2005, quando “Match Point” concorreu ao Prêmio de Roteiro Original, mas sem o impacto de antes. Contudo, na cerimônia do Oscar desse ano o seu “Meia-noite em Paris” é um azarão. Concorre a quatro estatuetas: Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Roteiro Original e Melhor Direção Artística. Dificilmente leva nas categorias principais, mas o fato é que o sucesso de público e crítica do filme recuperou seu prestigio em Hollywood. Para tentarmos compreender o “Fenômeno Woody Allen” propomos uma entrevista com o escritor, médico e filósofo Flávio Paranhos, um dos maiores especialistas brasileiros na obra desse pequeno grande cineasta.
Ademir Luiz — Para começar, poderia nos contar como foi o seu encontro com Woody Allen?

Foi em outubro de 2008, quando fui pesquisador visitante no Departamento de Filosofia da Tufts University, Boston, com o filósofo Da­niel Dennett. Eu sabia que Woody tocava com sua banda num hotel (Carlyle) de Nova York, e por isso me programei para ir. Comprei os in­gressos com seis meses de antecedência, o que me permitiu sentar na fila do gargarejo, menos de um metro de distância dele. Eu, minha esposa e filhas. Ah, sim, e, de quebra, meu irmão e cunhada. Ele toca clarineta e sua banda é ok, mas, se você quiser ver jazz de qualidade em NYC, é melhor ir ao Blue Note ou Village Vanguard (esse último mostrado num filme de Woody, “Anything Else”). Mas quem está ali é pra ver Woody de perto. Tive a sorte ainda de encontrar também David Mamet, que deu uma canja tocando piano. Eu tinha comprado as peças de Woody numa livraria especializada em teatro com planos de levar pra ele autografar. Por coincidência, também tinha comprado a peça “No­vember”, de Mamet, mas desgraçadamente não levei comigo. Ao final, quando o cerquei (literalmente) à saída do restaurante do hotel para ele autografar, disse-lhe que estava escrevendo um livro a seu respeito. Ele, então, pediu: "Que seja verdadeiro". Provavelmente estava preocupado com as fofocas biográficas. Tentei explicar que na verdade não era sobre a vida dele, mas sobre sua obra filosófica (Woody é o maior filósofo contemporâneo), mas ele já estava longe. É tímido e arredio como parece pelos filmes.
Ademir Luiz — E sobre esse livro “verdadeiro”, ele é bem esperado por seus leitores. Como anda o processo de escrita?

Empacado. Tenho uns dois terços prontos, inclusive publiquei alguns capítulos na revista “Filosofia Ciência & Vida”, da qual sou colunista. Esse livro virou meio que uma tese, uma relação de amor e ódio. Li de­mais coisas dele e sobre ele (não biográficas, mas interpretativas), tanto que enjoei. Mas, engraçado, não enjoo de seus filmes. Vejo sempre, perdi a conta das vezes. Minha última aquisição é um audiobook com a obra em prosa (quase) completa dele, lida por ele mesmo.

Roberta Ribeiro — O sr. é também professor de Ética no curso de medicina da PUC-GO. Woody Allen, em muitos de seus filmes, como por exemplo “Crimes e Pecados” (que inclusive o protagonista é um médico oftalmologista), aborda esse tema. O que o sr. acha da a­bordagem, ou, melhor di­zendo das interpretações que o cineasta dá a essa questão e se é possível utilizar os filmes do Woody Al­len para discutir ética em sala de aula?

A bem da verdade, minha unidade (se eu disser “minha disciplina” eu apanho) se cha­ma Formação Bio­psi­cos­social do Médico, e é dada logo no primeiro módulo. Co­mo mais adiante os alunos verão Ética Médica propriamente dita (o código), eu não me preocupo muito em entrar especificamente nisso. Prefiro ficar nas bases da ética e da bioética. E uso sempre alguns filmes. Meus preferidos são “Uma História Severina”, de Débora Diniz, “A Morte e a Don­zela”, de Polanski, “La­ranja Mecânica”, de Kubrick, “Ri­cardo III: Um Ensaio”, de Al Pacino, “Cobaias Hu­ma­nas”, de Joseph Sargent, “Decá­logo”, de Kieslowski e, claro, “Crimes e Pecados”, de Wo­ody. Esse último é riquíssimo para uma discussão filosófica. Tão rico que é um dos motivos de meu livro ter empacado, pois fico na dúvida se me dedico só a ele, ou se discuto os outros também. A dúvida (e outras coisas) me paralisa(m). A maioria dos comentadores classificou esse filme, que é o melhor de Wo­ody e o segundo melhor filme já realizado por alguém (o primeiro é “O Anjo Exterminador”, de Buñuel, evidentemente), en­fim, a maioria o classificou como cínico. Wo­ody e eu re­batemos e teimamos em que seja, sim, realista. Um dos comentadores é tão fã de Wo­ody e tão preocupado em “salvá-lo” que chegou a elaborar uma teoria esdrúxula, pela qual o protagonista (Ju­dah) se arrepende depois que o filme acaba. Foi monossilabicamente desautorizado por Woody. E ainda publicou isso em seu livro, como apêndice (a falta que faz uma boa autocrítica!). Em sala de aula centralizo o foco na utilização de “Crimes e Pecados” como ilustração de uma ética descritiva (assim é), em contraposição a uma normativa (assim deve ser). Podemos nos valer ainda de “Man­hat­tan”, “Tiros na Broadway”, “Sha­­­dows and Fog”, “Descons­truindo Har­ry”, “An­nie Hall”, “Stardust Me­mories”... De to­dos, na verdade.
Ademir Luiz — O sr. contou que na primeira aula sempre escreve no quadro em letras garrafais: “Eu não presto”. Woody Allen presta?

Não. Pelo mesmo motivo que eu e você também não. A natureza humana é hobbesiana, não rousseauniana. Somos animais (e não vegetais ou minerais, certo?), portanto, somos essencialmente bélicos, violentos, nepotistas, vaidosos e infinitamente egocêntricos. Por um motivo simples: não passamos de robôs de genes. Mas, com a maldição pascalina, temos consciência disso. E é essa consciência, no sentido por en­quanto neutro, de “razão” ou “ra­cionalidade”, como queira, que nos torna desgraçadamente diferentes. Atribuímos categorias valorativo-morais inexistentes na natureza. Se um tubarão comer apenas um pedaço de você suficiente para matar a fome dele, mas não você, o que terá é uma morte lenta e sofrida. O tubarão é cruel? Não, ele é só um tubarão. Um animal. Nós também, mas se eu fizer você morrer lentamente serei tachado pelos pares (animais humanos em geral) como cruel e merecedor da indignação alheia e punição. Como robôs e genes, temos uma tarefa a cumprir — espalhar o máximo possível... o nosso. O que inclui, se necessário, eliminar os dos outros, quanto mais distantes de nós eles forem.
Roberta Ribeiro — Woody Allen em alguns de seus filmes usa a história como pano de fundo. Em alguns casos as gags são explícitas. Tomemos como e­xemplos os filmes “Poucas e Boas”, “A Última Noite de Boris Grushenko” e “Bananas”. É possível trabalhar com os filmes analisando a sátira enquanto uma didática a ser utilizada no ensino, especificamente nas produções de Woody Allen?

As comédias “puras” de Wo­ody são prazerosas e inteligentes (particularmente “Love and De­ath”), mas menos úteis para, digamos, filosofar. “Love and Death”, eu diria mesmo, é a melhor comédia já realizada, em toda história do cinema. O me­lhor mesmo são as comédias entremeadas de drama e/ou as doce-azedas (“Crimes e Peca­dos” sendo o melhor representante das primeiras e “Manha­ttan”, das segundas).
Roberta Ribeiro — A obra de Dostoiévski é muito citada nos filmes do Woody Allen. Existem ecos de “Crime e Castigo” em “Crimes e Pecados”, “Match Point” e “O Sonho de Cassandra”. Como entende essa recorrência?

Ela é declarada. Ele afirma em todas as entrevistas. Além de fácil identificação. Começa com “Love and Death”, como uma brincadeira, mas segue adiante de forma cada vez mais profunda, culminando com “Crimes e Pe­cados”. “O Sonho de Cas­sandra” e “Ma­tch Point” são re­tornos ao tema, de forma mais pobre, embora “Match Point” tenha tido o mérito de ter sido bastante exitoso como entretenimento. A diferença entre Woody e Dos­toiévski é que o Woody é muito melhor, filosoficamente falando. Dostoiévski foi genial, claro, mas se deixou contaminar pela hiperreligiosidade, um dos traços, diga-se de passagem, de sua epilepsia (a respeito desse interessante tema sugiro a leitura do livro “O Homem que Fazia Chover”, de Edson Amâncio, editora Barcarolla, particularmente o capítulo 10 – “A contribuição involuntária de Dostoi­évski à neurologia”).
Roberta Ribeiro — O período “entre guerras” também se mostra recorrente em alguns filmes: “A Era do Rádio”, “A Rosa Púr­pura do Cairo” e “Zelig”. Co­mo pensar a relação de história e memória considerando que o filme “A Era do Rádio” é reconhecidamente autobiográfico, e a era do rádio foi um período que ele vivenciou?

Falam muito da influência de Bergman, mas acho que a de Fe­llini, em alguns casos, é mais descarada. “Stardust Memories” é o “Oito e Meio” de Woody. E “Ra­dio Days” é seu “Amarcord”. Considero “Stardust” melhor, mais inteligente. Quanto a “A­mar­cord”, esse é imbatível. É o melhor de Fellini e um dos me­lhores filmes já realizados por al­guém (a essa altura ficou evidente que sou dado a superlativos). A relação entre história e memória, por sinal, é maravilhosamente ilustrada por “A­mar­cord”. Fellini inventou um bocado de coisas, mas, ainda assim, os habitantes de sua Rimini "se lembraram" de tudo! “Zelig” é ótimo para discutir a noção de “autenticidade”, tal como posta pelos existencialistas e, consequentemente, o totalitarismo.
Ademir Luiz — Causou polêmica sua declaração de que Woody Allen é o maior artista que já existiu. Indo um pouco além do seu proverbial “porque eu decidi assim”, qual o sentido dessa provocação?

Por incrível que possa parecer, não é uma provocação. Eu poderia citar Platão, que, no final do “Banquete” se refere ao “poeta trágico e poeta cômico”, pra justificar a eficiência com que Wo­ody consegue misturar comédia e tragédia em seus melhores filmes. Ou poderia classificá-lo como polifônico, no sentido mais george-steineriano (mesmo o mais original dos artistas é polifônico) do que bakhtiniano, mas também nesse sentido, por que não? Uma verdadeira polifonia filosófica. Poderia, mas, se o fizesse, estaria entrando no enfadonho, vazio e absolutamente desprovido de sentido terreno da dialética erística. Esse é o problema com as ar­tes e humanidades. A referência para um argumento é outra referência, que, por sua vez, parte de outra referência... teórica. Pratica-se, na verdade, um “argumentum ad vericundium”. Cita-se “autoridades” para se “fundamentar” uma opinião. No entanto, ela continua sendo apenas uma opinião. Fundamentação sólida apenas experimentação científica pode fornecer. O que não é matematizável não existe (objetivamente). Por isso, fico com Susan Sontag, o melhor mesmo é uma erótica da arte, no lugar de uma hermenêutica. Mas isso não im­pede, veja bem, que exercitemos nossa argumentação teórica para o entretenimento de leitores que porventura “get a kick out of this”. Há gente pra tudo no mun­do, até mesmo pra ler um livro sobre a filosofia de Woody Allen (eu espero!).
Roberta Ribeiro — O filme “Meia-Noite em Paris” foi muito bem recebido pela crítica e pelo grande público. A produção aborda a questão da nostalgia, mostra a obsessão que temos pela “Idade do Ouro”; ou seja, a ideia de que o passado é melhor. Isso não seria fruto de uma mentalidade de cunho positivista, onde são exaltados os grandes heróis e figuras marcantes de um determinado período histórico?

Ao termo “positivista” aconteceu algo parecido com o que aconteceu com o termo “cartesiano” — transformaram-se, ambos, em xingamentos. O que é uma pena, pois se nos ativermos às intenções iniciais, não são coisas negativas, pelo contrário, são vacinas contra leviandades pseudocientíficas. Embora seja verdade que, na filosofia da mente, Des­cartes sirva mais como padrão de erro do que de acerto. Mas divago. Em “Meia-Noite em Paris” (agora indicado ao Oscar) Woody explora algo que nos é bastante conhecido, a síndrome de “a grama do vizinho é sempre mais verde”. No caso, grama histórica. Se “Meia-Noite...” ganhar Oscar, não existe justiça nesse mundo. Torço contra. É inacreditável, inconcebível, absurdo que outros filmes dele muito mais brilhantes não tenham sido sequer indicados, e esse receba.
Ademir Luiz — Frederic Raphael, roteirista de “Olhos Bem Fe­chados”, disse que Stanley Kubrick é “um diretor de cinema que por acaso é um gênio e não um gênio que por acaso é um diretor de cinema”. Essa afirmação vale para Woody Allen?

Eu sabia que você daria um jeito de botar Kubrick nisso. Que obsessão! Sim, eu sei, eu também, mas a minha obsessão é muito melhor do que a sua. Isso responde a pergunta?
Ademir Luiz — Responde, com certeza. Mas, falando nisso, Woody Allen dirigiu alguns filmes esteticamente belíssimos, como “Manhattan”, mas ele costuma ser mais elogiado pelos roteiros e direção de atores do que pela cinematografia. É inegável que sua obra é bastante desigual. Vai de obras-primas até bombas indesculpáveis, como “O Es­corpião de Jade”. A velocidade de sua produção, às vezes fazendo mais de um filme por ano, desequilibra o conjunto? Como pensar em termos de julgamento estético de uma obra esse possível desequilíbrio? Um filme tido como fraco de Woody Allen costuma ser melhor do que um bom filme de um cineasta mediano?

Realmente, fazer pelo menos um filme por ano durante vários anos tem essa desvantagem. Alguns são fracos, pelos padrões woodyallenianos. Mas, como você bem disse, mesmo esses são melhores do que a média que é lançada por aí. Cine­mato­gra­fi­camente, seus filmes são simples, ele raramente inventa moda. A não ser quando se vale do preto-e-branco, como em “Ma­nha­t­tan”, “Stardust Memories”, “Broadway Danny Rose”, “Sha­dows and Fog”. “Zelig” tem a montagem que ficou famosa. “Husbands and Wives” tem as câmeras “nervosas”, das quais não gostei. “De­constructing Har­ry” tem os cortes abruptos. Mas, de forma geral, sua força está nos diálogos. Se eu fosse escolher seu filme mais, digamos, bonito, eu também ficaria com “Manhattan”. Aquele início com “Rapsody in Blue” de Gershwin, o segundo compositor mais brilhante do século XX, é de arrepiar.
Roberta Ribeiro — O sr. já trabalhou em diversos artigos a influência da filosofia existencialista na obra de Woody Allen. Albert Camus escreveu que o único problema realmente sério da filosofia é o suicídio. Como pensar essa relação, por exemplo, em “Tudo Pode Dar Certo”, onde Woody Allen faz da tentativa de suicídio do personagem Boris uma das cenas mais engraçadas do filme?

“Tudo Pode Dar Certo” foi uma tradução infeliz de “Whatever Works”. Dá um sentido otimista para algo essencialmente pessimista. Manter-se vivo, seguir existindo sabendo que o universo está ex­pandindo e nos é indiferente (para usar termos de Woody) só é possível agarrando-se a qualquer coisa que sirva para nos segurar aqui. No caso do personagem Boris (maravilhosamente interpretado por Larry David) foram a sorte e as mulheres. No caso de Woody são seus filmes. Ele já disse várias vezes, pra quem quiser ouvir, que faz filmes única e exclusivamente para seguir vivendo, ou seja, pra não pular ele mesmo da janela de seu apartamento. Por isso os faz sem parar. A propósito, “Wha­tever Works” é, sem dúvida, o melhor filme dele nos últimos dez anos. Este, sim, deveria ser lembrado pro Oscar.
Ademir Luiz — Nas últimas décadas, Woody Allen adotou outras cidades para a filmagem de suas produções, como por exemplo, Londres, Paris, Roma e Bar­ce­lona, deixando um pouco a cidade de Nova York. O que o senhor acha que podemos esperar do tão comentado filme que ele promete realizar no Rio de Janeiro? Qual o peso da Copa e da Olimpíada para essa escolha de locação? Agora que “Meia-Noite em Paris” foi indicado ao Oscar, recuperando seu prestígio em Hollywood, filmar no Rio de Janeiro ainda interessa a Woody Allen?

Ele só saiu de Nova York porque não conseguia mais financiamento nos EUA. Vai aonde lhe dão dinheiro pra fazer seus filmes. Por isso os últimos são propagandas descaradas das cidades em que foram feitos, particularmente o de Paris. E ele só virá ao Brasil se lhe derem dinheiro suficiente para fazer um filme aqui. Parece coisa de interesseiro, mas é questão de sobrevivência mesmo.


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